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«(…)
«É aqui, que a febre da loucura aumenta Que o grito se contém mas nunca se
contenta»
«Encontrara,
entre os papéis da avó que o pai lhe passara, rascunhos de poemas e aquelas estranhas
cartas, com letras diferentes, mas todas com a mesma assinatura: Constança H. Cartas
como se tivessem sido escritas em épocas diferentes, mas para um mesmo homem:
Henrique. Cartas curtas e amareladas, no seu papel quase amarrotado, numa tinta
desbotada, como que a dissimular as emoções das palavras.
Guarda-as
consigo, sem tentar sequer desvendar o mistério. Inquieta, lê-as vezes sem conta,
procurando uma qualquer razão para a coincidência.
Mostra-as
a Henrique, que lhe pergunta se foi ela que as escreveu; olha-o, curiosa, vendo-o
um pouco pálido; fazendo por disfarçar o tremor das mãos onde as cartas da avó parecem
querer esvoaçar. Tira-lhas e vai guardá-las, fechadas na gaveta da escrivaninha
do quarto, para logo as voltar a tirar, relendo-as como se quisesse decorar o que
lá está escrito. Dito.
Agora
pensa nessas cartas e acha-as diferentes, com um sentido novo e maléfico. Como se
com elas tivesse herdado um destino que vinha de trás: muito antes mesmo de ter
nascido?
Mesmo
quando não se lembra de mais nada rememora-as, mas cala-se sobre elas, porque as
sente como um segredo guardado entre ela e a avó. Um elo. Não eram cartas só de
amor: eram sobretudo de medo. De um temor avassalador pela paixão, ou por aquilo
a que a paixão poderá obrigar. Uma insubordinação submersa? Sim, em todas elas,
mesmo naquela que podia ser considerada cronologicamente a primeira e onde a submissão
parece todo o tempo latente e mortal.
Ouve
o arrastar dos passos das doentes do lado de fora do quarto, ao longo do corredor. Os gritos são logo
abafados quando alguém os solta. Treme de frio sob os cobertores demasiado finos
que não defendem do gelo que a madrugada assume durante o Inverno. Por isso sabe
que é Inverno, pelo enregelamento que a faz soluçar baixinho. Desde que
Henrique morreu que ninguém a vem visitar. Lê e relê os livros que ele lhe trouxera
a seu pedido: Duras, Sylvia Plath, Clarice Lispector... Vidas femininas que se alinham
ali, à sua beira, que vai desfolhando, quem sabe se pela loucura... Emma Santos,
Florbela Espanca, Zelda Fitzgerald...» In Maria Teresa Horta, A Paixão segundo
Constança H., 1994, Bertrand Editora, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-252-242-7.
Cortesia de
BertrandE/JDACT