Cortesia
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Mas não basta a classificação deste texto para desprezar o problema da sua
origem. Com efeito, nem todos os argumentos de Filipe Moreira para o
secundarizar me parecem justos. As reminiscências das lutas entre clero de
simpatia ou origem moçárabe contra o clero de observância romana,
institucionalmente prolongadas pelas violentas controvérsias entre a comunidade
de Santa Cruz, simpatizante do primeiro, e os cónegos da Sé, representantes do
segundo, criaram em Coimbra um ambiente que não é lícito ignorar se se pretende
conhecer o sentido do episódio. Todavia, o teor da estória tal como é relatada
na Primeira
Crónica Portuguesa (não hesito em adoptar este título) manifesta uma
origem não clerical; o seu autor não parece conhecer suficientemente as
instituições eclesiásticas para utilizar o vocabulário adequado, e interpreta o
conflito dando um sentido simbólico aos pormenores escolhidos. Mas seria um
anacronismo atribuir-lhe um pensamento anticlerical. Neste ponto discordo por
completo da opinião de Filipe Moreira. O papel negativo cabe ao papa e aos seus
representantes; não ao clero português ou coimbrão no seu conjunto. Também não
me parece de modo algum que a escolha desta narrativa se destine, na mente do
redactor, a completar uma definição da autoridade do rei para com a primeira
das três ordens. Com efeito, na opinião de Filipe Moreira, depois do
episódio em que Henrique, moribundo, recomenda ao filho que seja companheiro
a filhos d’algo e faça honra aos concelhos, fora definida a
sua autoridade para com a segunda e a terceira das três ordens; faltaria marcar
a sua supremacia para com o clero. Acontece, porém, que não consigo descobrir
nenhum vestígio de tipo redactorial para sustentar tal tese. Pelo contrário: se
não me parece haver dúvida que o papel do rei para com os nobres e os
concelhos, tal como é definido no princípio da primeira sequência, se inspira
no princípio de que deve haver uma verdadeira partilha de funções e um
exercício do poder condicionado pelos privilégios dos nobres e a autonomia
relativa dos concelhos (e não numa autoridade absoluta do rei sobre eles), já o
relato do seu comportamento para com o clero tem um sentido muito diferente.
Com efeito, o narrador, atribui a Afonso a plena autoridade (isto é exercida
sem prévia consulta dos representantes da primeira ordem) sobre a
escolha do bispo, e não hesita em ameaçar de morte o legado papal, reclamando
assim uma posição acima do próprio papa. Não há, pois, nenhum paralelismo entre
o sentido da primeira sequência do texto e o sentido da terceira. O conceito de
poder régio é completamente diferente nas duas secções do texto. Para mim é,
pois, evidente que a Crónica se baseou em narrativas diferentes e procedentes
de meios socais distintos.
A
meu ver, a tese da coerência global do texto, defendida por Filipe Moreira,
devia-se basear prevalentemente em argumentos formais e textuais. Neste
sentido, façamos um pequeno exercício quantitativo. Reparemos que a primeira
sequência (morte de don Henrique) tem 34 linhas; a segunda (conflito com a mãe
e o imperador), 53; a terceira (bispo Negro), 72; e a quarta (Badajoz), 21 (sem
contar com a secção de carácter analístico, com 21 linhas). É evidente a
extensão francamente maior da terceira. Ora é precisamente aquela que mais
claramente constitui uma verdadeira estória. Este carácter pode-se também
atribuir à narrativa da luta com a mãe, mas a sua extensão é menor. Todavia, o
redactor atribui a esta, e não àquela, a função de comandar a intriga
envolvente, pois é ela que liga entre si os episódios de S. Mamede, da luta com
o Imperador, da derrota de Badajoz, e até da intervenção do legado papal. Se há
alguma unidade no texto ela inspira-se no conflito entre Afonso e sua mãe. De
facto, textualmente falando, os elementos de ligação existem. Mas, entre a
segunda e a terceira sequência, a fórmula usada pelo redactor é de tal modo
tosca que não se pode ignorar o seu carácter artificial: e despois ouve
batalha em nos quampos d’Ourique e venceo-a. E dês ally em diante se chamou el
rey dom Affonso de Portugal. E o apostólico ouvio dizer como prendera sa madre,
e que a trazia consigo presa. A esta observação pode-se acrescentar o
carácter conclusivo da fórmula que encerra a terceira sequência, como se fosse
um texto autónomo: e en todos seus dias nem huum nom fez al em toda sa terra
senom o que ell quis.
Em
tempos sustentei que o meio social onde, segundo os conhecimentos históricos
actuais, seria lógico (acentue-se este qualificativo) situar o nascimento da
história do bispo Negro seria no meio dos cavaleiros de Coimbra. Aquele mesmo
onde, também hipoteticamente, teria sido redigida a narrativa latina da
conquista de Santarém. Depois de eu ter sugerido tal aproximação, a minha hipótese
viria a ser de certo modo confirmada e aprofundada pelas objectivas
investigações da professora Leontina Ventura acerca dos contornos e evolução
desse mesmo grupo social. A existência de um grupo de cavaleiros que teriam
sido os fiéis auxiliares de Afonso Henriques nas expedições que conduziu entre
1135 e 1169, cujos sucessores formaram um grupo ligado por afinidades de
parentesco, sedeado em Coimbra e nas regiões mais próximas, embora não possa
ser demonstrada de uma forma apodíctica, apoia-se em vários indícios concretos
e concordantes. Creio que se lhe pode atribuir consistência suficiente para o
propor também para explicar o que há de típico na história do bispo Negro,
incluindo as reminiscências do conflito em torno do ritual moçárabe, prolongado
pelos ódios que a intervenção papal desencadeou no conflito entre a Sé de
Coimbra e o mosteiro de Santa Cruz. Em termos textuais, esta hipótese apoia-se
na maneira como a narrativa relata a intervenção dos vassalos que anunciam ao
rei a fuga do cardeal quando ele se levanta de manhã, e a intervenção dos quatro
cavaleiros que em Vimieiro o aconselham a não o decapitar. Em nenhuma outra
fonte medieval, exceptuando a da conquista de Santarém (com origem semelhante),
aparece tão bem delineada a relação que se teria estabelecido entre Afonso
Henriques e os seus apoiantes mais fiéis. A imagem do
rei rodeado dos seus vassalos, quase como chefe de um bando armado, concorda
perfeitamente com o que sabemos do grupo de cavaleiros de Coimbra, que
constituiu o núcleo duro da corte afonsina até ao desastre de Badajoz. Na
narrativa, porém, o comportamento de Afonso aparece já transfigurado pela
distância de uma memória de duas ou três gerações». In José Mattoso, A Primeira
Crónica Portuguesa, Revista Medievalista, Ano 5, Nº 6, Julho de 2009, ISSN
1646-740X.
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