Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) As crianças foram educadas
nesta atmosfera de astuta auto-santificação e de coisas não mencionáveis.
Também elas viam a branca flor lá no alto, em alturas inacessíveis. Também elas
a sabiam entronizada, num solitário esplendor, muito acima das suas vidas,
nunca destinada a ser tocada. Ao mesmo tempo, do vil mundo exterior, surgia por
vezes um grosseiro e diabólico odor de egoísmo e degradada luxúria, o odor daquela
horrível vadia, A-que-fora-Cynthia. Essa vadia conseguia, de vez em quando, fazer
chegar um bilhetinho às mãos das suas raparigas, das suas filhas. Quando isso
acontecia a Mater, com os seus cabelos prateados, tremia interiormente de ódio.
Se A-que-fora-Cynthia alguma vez regressasse, não restaria grande coisa da Mãe.
Era então que uma secreta rajada de ódio saltava da velha avó para as crianças,
filhas daquela lasciva vadia, daquela Cynthia, que demonstrara um desprezo tão
afectuoso pela Mater.
Misturado com tudo isto havia o
facto de as crianças se recordarem perfeitamente da sua verdadeira casa, o
vicariato no Sul, e da sua fascinante, mas pouco dependente, mãe, Cynthia. Ela
brilhara muito, fora uma torrente de vida, um vivo e perigoso sol no lar,
sempre a ir e a vir. Para elas, a presença da mãe estivera sempre associada ao
brilho, mas também ao perigo; ao fascínio, mas com um assustador egoísmo. Agora
o fascínio desaparecera e a branca flor, como uma grinalda de porcelana, gelava
no seu túmulo. O perigo da instabilidade, essa espécie de egoísmo peculiarmente
perigosa, como a dos leões e dos tigres, também desaparecera. Havia agora uma
estabilidade completa, onde era possível sucumbir em segurança.
Mas as raparigas estavam a
crescer e à medida que cresciam tornavam-se mais definitivamente confusas, mais
activamente intrigadas. A Mater, à medida que envelhecia, via cada vez menos. Tinha
de haver alguém para a guiar. Nunca se levantava antes do meio-dia. No entanto,
cega ou presa à cama, dirigia a casa. Além disso, não estava presa à cama.
Sempre que estavam presentes homens, a Mater encontrava-se no seu trono. Era
demasiado astuta para cortejar a negligência, muito em especial porque tinha rivais.
A sua grande rival era a rapariga mais nova, Yvette. Yvette tinha alguma da
vaga e descuidada jovialidade de A-que-fora-Cynthia. Mas esta era um pouco mais
dócil. A avó talvez a tivesse agarrado a tempo. Talvez!
O pároco adorava Yvette e
mimava-a com apaixonada ternura, o que era o mesmo que dizer: então não sou um
homem indulgente e de terno coração? Ele gostava de ter fraquezas. Ela conhecia-as,
esta opinião que ele tinha de si mesmo, e a Mater também conhecia as opiniões
dele e utilizava-as, transformando-as em enfeites para uso dele próprio, para
lhe embonecarem o carácter. Ele desejava, a seus próprios olhos, possuir um carácter
fascinante, tal como as mulheres desejam vestidos fascinantes. Assim,
astuciosamente, a Mater colocava sinais de beleza por cima dos seus defeitos e
deficiências. O seu amor maternal dera-lhe a chave para as fraquezas dele,
fraquezas que ela escondia dele próprio, enfeitando-as. Enquanto aquela, A-que-fora-Cynthia...!
Mas a este respeito, não a mencionemos.
Aos
seus olhos, o pároco era quase um corcunda e um idiota. Mas o mais engraçado
era o facto de a avó, secretamente, odiar mais Lucille, a rapariga mais velha,
do que a mimada Yvette. Lucille, a inquieta e irritável, estava mais consciente
de se encontrar sob o domínio do poder da avó do que a distraída Yvette,
estragada com mimos. Por outro lado, a tia Cissie odiava Yvette. Odiava até o
seu nome. A vida da tia Cissie fora sacrificada à Mater, a tia Cissie sabia-o e
a Mater sabia que ela o sabia. Este facto, enquanto os anos passavam, foi-se
tornando numa convenção. A convenção do sacrifício da tia Cissie era aceite por
toda a gente, incluindo a própria Cissie. E ela rezava muito por causa disso. O
que também queria dizer que, algures, tinha os seus próprios sentimentos pessoais,
coitada dela. Deixara de ser Cissie, perdera a sua vida e o seu sexo. E agora
que se arrastava em direcção aos cinquenta, surgiam nela estranhos e verdes
clarões de ódio e, nessas ocasiões, ficava como louca». In DH Lawrence, A Virgem e o
Cigano, 1926, Editora Assírio & Alvim, 1984, colecção O Imaginário, ISBN 978-972-370-164-7.
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