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As
Encostas de Albuquerque
«Senhora minha prima!... O que me
queres, Inês?, perguntou dona Teresa Martins Meneses, pacientemente. Já terminei
o lavor que me confiou, da bordadura do manto de Nossa Senhora, disse a pequena,
arrebatando à sua tutora uma forte gargalhada. Ora, Inês, o manto de Nossa Senhora?
Uma mantilha para pôr aos pés da santa da nossa bela igreja casteleja! Mas
posso, senhora minha prima? Posso? Que fogo é esse, menina? E o que desejas? Permite-me
que desça à vila, por folia?, suplicou a petiza, com os olhos cheios de céu. Por
folia, dizes tu? E que folias são essas que te levam lá abaixo? Ora, calcorrear
as ruas de Villa Adentro que as muralhas abraçam, beber das suas fontes,
espreitar a Judiaria e a porta da sinagoga, ver aquelas casinhas caiadas de branco
e flores às janelas, olhar as gentes, ver as outras moças galhofar. Muito me
apraz também pasmar-me a mirar as lápides que o senhor seu marido fez esculpir sobre
as portas da vila, e em cujos escudos se vêem vários castelos em que luzem as quinas
do reino, aclarou a menina, os extensos cabelos dourados dançando com o movimento
dos seus gestos.
São essas então as tuas folias...,
sorriu a prima, entretida, na sua pose distinta de realeza. E, no entanto, bem sabes
que a uma infanta não é dado passear-se desacompanhada pelo burgo. Oh, não me passaria
pela cabeça descer à praça desamparada! Mencía e Ilduara ser-me-iam por companhia.
Ilduara é-me precisa nos arrumos, recusou a senhora de Albuquerque. E Sancha? Dona
Sancha andava ora mesmo pelos jardins a cuidar das rosas... Precisamente, a cuidar
das rosas! Mas as rosas podem esperar. Leva-a, mais à Mencía, e não te quedes
pelo povoado todo o santo dia, advertiu. Quero-te cá a horas das preces. Como lhe
sou grata, senhora minha prima!, alegrou-se a petiza, saltitando irrequieta de pé
em pé. Não me demorarei, juro, e terei sempre por perto às nossas criadas.
Por que porta saireis vós?, acautelou
dona Teresa. Pela de Valência!, esclareceu a menina. Não. Pela de Valência, não.
Vão antes pela porta de São Mateus, que é mais seguro. A que ostenta o escudo de Afonso Sanches?
Essa mesma. Não se aflija, senhora minha prima, faremos conforme à sua vontade.
Ah, e leva uma capa!, bradou dona Teresa, já a menina, de coifa pendida na
nuca, lhe escapava da vista por entre as notáveis paredes do castelo, segurando
as fraldas das saias do seu vestido tom de milho. E não me saias fora das muralhas!
Jamais! Ouviu-lhe ainda prometer, na sua voz pequenina e abafada por aqueles sólidos
muros, já ela ia corredor acima.
Corria o ano de Cristo de 1331. Reinava
então Afonso XI, senhor de Castela e Leão, e nas suas terras respirava-se uma paz
débil e quebradiça, mas sem grandes conflitos bélicos, nem nomeáveis sobressaltos.
Um mal-estar persistente e temerário entre os soberanos de Castela e Portugal, todavia,
ameaçava a bonança, motivado pelos despropósitos com que o jovem monarca castelhano
humilhava a sua mulher, Maria de Portugal, filha do rei vizinho, com uma amante
que havia muito mantinha. Se o era por Afonso IV muito amar a filha, por orgulho
de Estado, ou por mero receio de que um bastardo daquele (que além de genro era
seu sobrinho) viesse a frustrar as ambições políticas do neto, que nem gerado ainda
fora, não se o sabia dizer. Factos importantes e preocupantes, com efeito, de que
Inês, na inocência e meninez dos seus tenros seis anos de idade, morava alheada,
no seu modo leve e feliz de percorrer a vida». In Maria João Fialho Gouveia,
Inês, 2016, Topseller, 20/20 Editora, 2016, ISBN 978-989-884-372-2.
Cortesia de Topseller/20/20
Editora/JDACT