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«Um vento violento trazia a chuva
do mar enquanto me dirigia para casa pelas calçadas íngremes e escorregadias da
minha adorada cidade do Porto. Estávamos em Maio de 1798, um mês depois do meu sétimo
aniversário. Cuidadosamente arrumados dentro do cesto de verga, encontravam-se
dois rolos de musselina azul-índigo que tinha concordado em ir buscar para a
minha mãe, mas apenas em troca de um favor, devo confessar. Se esta chuva
salpicasse um fio do seu tecido, ela iria resmungar toda a noite e
recusar-se-ia a fazer o meu doce preferido. Daí que, não tanto para continuar a
proteger as mercadorias, mas tendo em conta a minha gulodice, tenha procurado
abrigo.
Uma certa desconfiança herdada em
relação a todas as coisas religiosas levou-me a escolher como refúgio a velha
livraria do senhor David, em vez da capela caiada mesmo ali ao lado. Quando
transpus a porta baixa, o senhor David incitou-me a deixar o cesto atrás da sua
escrivaninha e a descalçar as botas encharcadas, que pendurou por cima da grade
de ferro ao pé da lareira. Senhor David, perguntei, posso ir para as Ilhas Britânicas? Vai
lá, rapaz!, acedeu, sorrindo. Corri pelo soalho rangente rumo à bafienta sala
do fundo, onde o senhor David guardava o seu tesouro de livros ingleses, a que
o meu pai e eu, desde que me consigo lembrar, chamávamos as Ilhas Britânicas.
Devo explicar que, embora eu
tenha nascido no Porto, uma cidade provinciana com sessenta e cinco mil almas,
no Norte de Portugal, o meu pai tivera a honra, como ele tantas vezes dizia, de
ter nascido escocês. Eu ainda não me apercebera disso, mas, quando falava
inglês, fazia-o com uma pronúncia claramente escocesa. Com estantes carregadas
de livros, mofo e aranhas de patas fininhas, estas Ilhas Britânicas eram
abençoadas pela abundância, mas, infelizmente, não se podiam gabar de ter uma
janela decente, salvo a pequena claraboia octogonal no tecto baixo e curvo. A
chuva fustigava o vidro amarelecido, provocando um tamborilar muito semelhante ao
de ratos a correr.
Estava tão escuro que mal conseguia
ver as minhas próprias mãos e pensava em pedir uma vela quando, repentinamente,
o sol espreitou por entre as nuvens, iluminando uma estante encostada à parede.
Aproximando-me, distingui um dos títulos gravado em letras douradas cintilantes,
As Fábulas da Raposa. Visto que não havia nenhum nome de autor impresso
na capa, e dado como eu era a voos de fantasia, imaginei que tinha sido uma
raposa inteligente a escrevê-las. O sol desapareceu e ficou tudo escuro outra
vez. Enxotei Hércules, o gato malhado do senhor David, sentei-me na
serradura do chão e abri o livro. Lá dentro, as espessas páginas amarelecidas
tinham desenhos coloridos de cães, gatos, macacos, elefantes e muitos outros
animais, uma espécie de Arca de Noé. Fiquei tão excitado com aquela descoberta
que só consegui ler as primeiras frases de cada história. Desejando perguntar o
preço ao senhor David, mas temendo a perspectiva de uma quantia acima das
minhas posses, levantei-me para ponderar as opções. Foi nessa altura que uma
folha de papel azulado, qual asa de borboleta, caiu das páginas do livro, flutuando
até pousar em cima do meu pé direito.
Apanhei-o e olhei
sub-repticiamente em volta. O senhor David estava sentado à secretária a fumar
cachimbo, esfregando distraidamente a careca enquanto estudava um mapa enorme. Hércules
tinha-se enroscado no colo dele. Plantei-me no canto mais escuro da sala e
percebi que aquele papel era, na verdade, uma carta, escrita numa letra
elegante e dirigida a uma mulher chamada Lúcia. Começava: Minha adorada, considerar-me-ias
demasiado atrevido se dissesse que todas as noites caio nos braços do sono
imaginando a tua mão sobre o meu peito? A seguir, li sobre lábios húmidos,
luar, desmaios e flores de laranjeira. Reconheci a palavra seios... Que
emocionante aquilo parecia! Todavia, muitas outras palavras eram-me
desconhecidas. Precisaria de um dicionário para saber quão chocante era a
carta. Estava assinada com um grande floreado por um homem chamado Joaquim. Ele
até fazia a pintinha do i com a forma de um coraçãozinho minúsculo». In Richard
Zimler, Meia-noite ou O Princípio do Mundo, 2003, Porto Editora, 2017, ISBN
978-972-004-727-4.
Cortesia de
PEditora/JDACT