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«(…) Dom Bernardo! Dom Bernardo!, disse o príncipe,
sufocado de cólera, lembrai-vos de que afronta que se me fizesse nunca ficou
sem paga! Quereis, senhor infante, soltar vossa mãe? Não! Mil vezes não! Guardai-vos!
E o bispo saiu, sem dizer mais palavras. Afonso Henriques ficou pensativo por
algum tempo; depois, falou em voz baixa com Lourenço Viegas, o Espadeiro, e
encaminhou-se para a sua câmara. Daí a pouco o alcácer de Coimbra jazia, como o
resto da cidade, no mais profundo silêncio.
Pela alvorada, muito antes de romper o sol no dia
seguinte, Lourenço Viegas passeava com o príncipe na sala de armas do paço
mourisco. Se eu próprio o vi, montado na sua nédia mula, ir lá muito ao longe,
caminho da terra de Santa Maria. Na porta da Sé estava pregado um pergaminho
com larga escritura, que, segundo me afirmou um clérigo velho que aí chegara
quando eu olhava para aquela carta, era o que eles chamam o interdito... Isto
dizia o Espadeiro, olhando para todos os lados, como quem receava que alguém o
ouvisse. Que receias, Lourenço Viegas? Dei a Coimbra um bispo que me excomunga,
porque assim o quis o papa: dar-lhe-ei outro que me absolva, porque assim o
quero eu. Vem comigo à Sé. Bispo Bernardo, quando te arrependeres da tua
ousadia já será tarde.
Dali a pouco as portas da Sé estavam abertas, porque o
sol era nado, e o príncipe, acompanhado de Lourenço Viegas e de dois pajens,
atravessava a igreja e dirigia-se à crasta, onde, ao som de campa tangida,
tinha mandado ajuntar o cabido, com pena de morte para o que aí faltasse. Solene
era o espectáculo que apresentava a crasta da Sé de Coimbra. O sol dava, com
todo o brilho de manhã puríssimo, por entre os pilares que sustinham as
abóbadas dos cobertos que cercavam o pátio interior. Ao longo desses cobertos
caminhavam os cónegos com passos lentos, e as largas roupas ondeavam-lhes ao
bago suave do vento matutino. No topo da crasta estava o príncipe em pé, encostado
ao punho da espada, e, um pouco atrás dele, Lourenço Viegas e os dois pajens.
Os cónegos iam chegando e formavam um semicírculo a
pouco distância de el-rei, em cuja cervilheira de malha de ferro ferviam
buliçosos os raios do sol. Toda a clerezia da Sé estava ali apinhada, e o
príncipe, sem dar palavra e com os olhos fitos no chão, parecia envolto em
fundo pensar. O silêncio era completo. Por
fim Afonso Henriques ergue o rosto carrancudo e ameaçador e disse: cónegos da
Sé de Coimbra, sabeis a que vem aqui o infante de Portugal? Ninguém respondeu
palavra. Se não sabeis, dir-vo-lo-ei eu, prosseguiu o príncipe: vem assistir à
eleição do bispo de Coimbra. Senhor, bispo havemos. Não cabe aí nova eleição,
disse o mais e velho e autorizado dos cónegos que estavam presentes e que era o
adaião. Ámen, responderam os outros. Esse que vós dizeis, bradou o infante
cheio de cólera, esse jamais o será. Tirar-me quis ele o nome de filho de Deus;
eu lhe tirarei o nome do seu vigário. Juro que nunca em meus dias porá dom
Bernardo pés em Coimbra: nunca mais da cadeira episcopal ensinará um rebelde a
fé das santas escrituras! Elegei outro: eu aprovarei vossa escolha.
Senhor, bispo havemos. Não cabe aí nova eleição,
repetiu o adaião. Ámen, responderam os mais. O furor de Afonso Henriques subiu
de ponto com esta resistência. Pois bem! disse ele, com a voz presa na
garganta, depois de olhar terrível que lançou pela assembléia, e de alguns
momentos de silêncio. Pois bem! Saí daqui, gente orgulhosa e má! Saí, vos digo
eu! Alguém por vós elegerá um bispo... Os cónegos, fazendo profundas
reverências, encaminharam-se para as suas celas, ao longo das arcarias da
crasta. Entre os que ali se
achavam, um negro, vestido de hábitos clericais, tinha estado encostado a um
dos pilares, observando aquela cena; os seus cabelos revoltos contrastavam pela
alvura com a pretidão da tez. Quando o príncipe falava, ele sorria-se e meneava
a cabeça, como quem aprovava o dito. Os cónegos começavam a retirar-se, e o
negro ia após eles. Afonso Henriques fez-lhe um sinal com a mão. O negro voltou
para trás.
Como hás nome?, perguntou-lhe o príncipe. Senhor, hei
nome Çoleima. És bom clérigo? Na companhia não há dois que sejam melhores. Bispo
serás, Dom Çoleima. Vai tomar teus guisamentos, que hoje me cantarás missa. O
clérigo recuou: naquela face tisnada viu-se uma contracção de susto. Missa não
vos cantarei eu, senhor, respondeu o negro com voz trémula, que para tal auto
não tenho as ordens requeridas. Dom Çoleima, repara bem no que te digo! Sou eu
que te mando vás vestir as vestiduras de missa. Escolhe: ou hoje tu subirás os
degraus do altar-mor da Sé de Coimbra, ou a cabeça te descerá de cima dos
ombros e rolará pelas lájeas deste pavimento.
O clérigo curvou a fronte. Kirie-eleyson... Kirie-eleyson... Kirie-eleysom!, garganteava daí a pouco Dom Çoleima,
revestido dos hábitos episcopais, junto ao altar da capela-mor. O infante
Afonso Henriques, o Espadeiro e os dois pajens, de joelhos, ouviam missa com
profunda devoção». In Alexandre Herculano. O Bispo Negro (1130) e Arras por Foro de
Espanha, 1851, Livraria Bertrand, Editorial Verbo, Biblioteca Básica Verbo, 1971.
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