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Carta
IV
«(…)
A vida é dos de coração gelado e hirto. Amanhã é tarde, depois é impossível.
Tudo na vida é transitório. Tudo passa, tudo esquece. A criança será homem, o
lacaio será senhor, o arbusto será árvore, o ontem será hoje, o bom será mau.
Ai dos que param, ai dos vencidos! Aquela cena é bem a Vida, esta luta brutal e
torturada que começa quando o sol se ergue loiro e triunfante para só terminar
às horas em que tudo parece desolado e morto.
O
crepúsculo cai suavemente. Ao longe a casaria branca de uma cidade adivinha-se.
E as altas chaminés das fábricas atiram para os astros o seu fumo apodrecido e
gasto como um hálito maldito e desolador.
A
minha casa deita sobre a cidade e sobre o mar. Lá em baixo ficam os seus
hospitais, as suas prisões, as suas morgues,
os seus cemitérios, igrejas, calabouços, penitenciárias, hospedarias e
albergues, docas, oficinas e quartéis. Seus bairros magníficos e seus bairros
pobres. Lá moram os que se embebedam e os que esmolam, os que têm dinheiro, os que
não têm trabalho e os que se portam mal. Os telhados amontoam-se e o sol, que
agoniza para lá da barra, põe grandes retalhos de ouro fulvo no agrupamento
regular e caprichoso dos edifícios e moradias, afogueando o horizonte num
clarão de aurora. Balança-se no ar pesadamente uma fumarada espessa como um
nevoeiro, feita de mil suores, mil respirações, mil hálitos diferentes, desde o
hálito do bispo ao do bêbado, do órfão ao do mendigo, do cocheiro ao do
sacerdote. E como o fumo, paira no ar o Babel dos ruídos, um rumor confuso
feito do ralo das agonias ao estrupido das pragas, do das cantigas ao das
disputas. O ruído das máquinas que rangem, chaminés que resfolgam, peitos que respiram,
olhos que choram, gargantas que soluçam, corpos que tombam.
O
desabrochar das violetas nos canteiros e das rosas nas jarras dos salões, subtil
como um aroma, mistura-se com o ruído tamborilado e convulso, como um rufo de
pandeiro, das carpideiras de enterro. Os gritos e as pragas dos vencidos
baralham-se com as exclamações de triunfo dos vencedores. E quantas cidades tem
o mundo? As cidades quantas almas? As almas quantas tragédias? Toda a gente tem
em si a sua tragédia. As próprias coisas mudas, a lama,
o pão e o vinho, a pedra da calçada, a labareda e a gota de água, o verme e a
planta a têm.
Pensaste
alguma vez na tragédia de uma cama de hospedaria, na das enxergas dos hospitais,
na de uma ladra, de uma mortalha ou de uma camisa de rendas? Na tragédia das bandeiras
esfuracadas de mil batalhas, na dos afogados no alto mar, na dos violinos, na
de um náufrago da Medusa ou na da princesa de Lamballe? Tudo é tragédia desde a
tragédia do parto à tragédia do estertor. Quem poderá saber a que há na flauta
de um pastor e no leito de uma rainha? A tragédia que houve na alma de Vaillant
o anarquista, e na de Tintoreto o pintor? A de Alexandre o grande e a de
Sócrates o estóico? Na alma de Jesus e na alma de Marat? Quem sabe o que vai na
alma dos clowns e
na dos pescadores? Na dos loucos e na dos maus?
A
tumba dos pobres, o carro celular, a vala, a serapilheira, o caixão, as
costureiras, os vagabundos, as cigarreiras, os emigrantes, os degredados, os
cavadores, os homens de génio, as que têm leite nos peitos, as que arrastam um
coração sem amor, os ninhos abandonados, tudo, de tudo isto quem sabe a sua
tragédia? E a tragédia das que têm livro as quais a polícia rouba e o amigo
espanca? Hamlet cismou na tragédia da caveira. Quem cismará agora na cidade? O
corpo de uma cortesã tem a mesma tragédia do que um prato de hotel ou um copo de
botequim. Por todos servido, por todos usado, o prato e o copo quando se partem
o seu destino é o lixo. A mulher quando envelhece e morre, o seu destino é a
vala. Não serão pois, copo, prato e mulher inteiramente iguais? Algumas vezes a
tragédia é caricata, é pândega, dá vontade de rir. Mas nunca ninguém riu da que
consigo arrasta». In Albino Forjaz
Sampaio, Palavras Cínicas, 1905, prefácio de Fred Teixeira, Wikipédia, 2011,
Editora Guerra e Paz, ISBN 978-989-702-000-1.
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