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«(…) Primeiro rei a beneficiar das
enormes riquezas provenientes da Índia, Manuel I, com o entusiasmo cândido dos novos-ricos,
quis, através dum gesto espectacular, mostrar-se igual, se não superior, aos outros
poderosos soberanos da Europa e chamar a si a boa vontade do papa. De Lisboa partiu
em 1514 uma embaixada constituída por centenas de pessoas e cavalos, todos eles
derreados sob o peso dos ornamentos de ouro e de pérolas. E porque desde a Antiguidade
a Itália não tornara a ver elefantes, Manuel I mandou igualmente um elefante,
sobre o qual ia o pontifical mandado de presente ao Santo Padre. Atrás do elefante
uma ouça domesticada e dois leopardos em jaulas. Depois fidalgos, bispos. Embaixadores,
serventes, escudeiros, todos enfeitados, emplumados, deslumbrantes de riquezas,
fazendo pasmar boa terça parte da população de Roma, a qual se juntara nas ruas
a ver passar o préstito.
Chegada a procissão em frente do castelo
de Sant'Angelo, o papa, com os seus cardeais, apareceu na varanda a recebê-la; e
o elefante, molhando a tromba, como hissope, numa bacia de água perfumada, aspergiu
por três vezes, primeiro o papa, depois o povo. Singular cerimónia,
extravagante sacerdote! Mas o embaixador voltou de mãos vazias, ou quase, e o rei,
inconsequente e dúbio na sua política, oscilando entre o bom senso e a ambição,
julgou pagar com a expulsão dos judeus o preço do império da Península. Tal como
em Espanha, o ódio aos judeus era a mazela tradicional do povo português, e já em
1361 as cortes pediam ao rei Pedro que não desse lugar aos judeus de sua terra de
onzenarem, exigindo mais tarde que estes se distinguissem pelo traje e que não lhes
fossem dados cargos públicos.
Decidindo pela expulsão pura e simples,
Manuel I ordenou que se juntassem em Lisboa os judeus de todo o país, dando-lhes
prazo de embarque. Vinte mil judeus esperavam as naus, contando hora a hora o prazo
da redenção. Esse prazo correu sem virem as naus; por isso foram todos
convertidos à força, porque os teimosos ficavam cativos. Esse baptismo forçado,
causa de tantas desgraças posteriores, revela a política dúbia e falsa de um governo
que não tinha a coragem purista do castelhano. Desumanos, os actos eram ao mesmo
tempo cobardes, pois o cronista diz, com franqueza, que se procedia assim com os
judeus por serem párias, sem rei nem terra, não se podendo fazer outro tanto aos
mouros, com medo das represálias dos soberanos maometanos.
Deste episódio trágico ficou-me
na lembrança a descrição quase terna que dele nos fizera uma professora: os judeus
tinham matado Nosso Senhor e depois alguns tinham vindo para cá. O povo, então,
pediu ao rei que os mandasse embora, mas eles preferiram ficar e foram todos baptizados.
Da terrível matança que, começada no dia 19 de Abril de 1506, durou três dias e
duas noites, nem pio. Pelas contas foram assassinados 2300. Os judeus eram a causa
da fome, eram a causa da peste! De cruz alçada, saindo da igreja, os padres vinham
clamando Heresia! Heresia!, concitando o povo à matança (...) Traziam os judeus
às manadas de quinze ou vinte, amarrados, feridos, semimortos, e lançavam-nos aos
montes nas fogueiras (...) Ao saque de Lisboa tinham corrido as tripulações dos
navios do Tejo, mais de quinhentos marinheiros flamengos e outros, e na faina do
roubo e da matança andavam gentes de todas as nações e cores, invadindo as
casas, violando as mulheres e incendiando.
Demorou
três dias antes que o rei acudisse com a tropa e, enforcando muita gente, puniu
o que não soubera prevenir, mas nada fez para evitar que os acontecimentos de Lisboa
se repetissem periodicamente em quase todo o país». In J. Rentes de Carvalho, Portugal, A
Flor e a Foice, Quetzal Editores, Lisboa, 2014/2015, ISBN 978-989-722-146-0.
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