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Assassínio à porta dell’Olivella
«Ainda era dia claro, porém,
todos se apressavam para chegar a tempo. Quando o mestre Domenico Colomb estava
de serviço, como naquela semana, não mostrava compaixão alguma para com os retardatários.
Mal o gradeado de ferro era descido, não abria a porta a mais ninguém, sob que pretexto
fosse, mantendo-se insensível às súplicas de uns e às lisonjas de outros. Os hortelãos
do Bisagno ainda se recordavam da contrariedade que acontecera a Pierino Fregoso,
uns anos antes de suceder ao seu pai como doge. Atrasara-se junto a uma lavadeira
de peito generoso e, ao chegar com os amigos às portas da cidade, vira-lhe ser
recusada a entrada. Bem que se enfurecera, blasfemara, ameaçara, mas nada abalara
a determinação do cérbero da muralha, como ele o apelidara com soberba. Nem
que fosse um dos Reis Magos, ou Nosso Senhor Jesus Cristo em carne e osso, teria
direito a um tratamento de deferência.
Deste modo, vira-se na obrigação
de passar a noite com os companheiros na Hospedaria da Loba Zarolha, propriedade
de Domenico, que se situava fora da cintura da muralha, a esvaziarem copos de vinho
uns atrás dos outros. No Verão, como no Inverno, mal o Sol começava a descer no
horizonte, a cidade encerrava-se atrás das suas muralhas. Tinham sido edificadas
para a proteger dos ataques de surpresa dos salteadores a soldo dos fidalgos de
Lavagna. Estas autênticas feras não hesitavam em surpreender os viajantes e os peregrinos
que se aproximavam da cidade e desatendiam a vigilância. Por diversas ocasiões,
tinham seguido a sua presa até junto do portão do Convento de San Stefano,
enquanto os nobres se fechavam nas torres altas e ameadas que tinham mandado erigir
mesmo no centro de Génova.
Cansada de tais desvelos, a arraia-miúda
exigira que se reparasse a antiga cintura da muralha, erigida uns séculos antes,
e cuja vigilância dos portões fora confiada a homens provenientes do seu seio. A
medida dera os seus frutos. Os Fieschi, que outrora haviam semeado o terror, tinham
descido do seu covil montanhoso para virem instalar-se na cidade. Tinham posto fim
às pilhagens por considerarem isso mais rentável e para aproveitarem a prosperidade
do porto. A paz voltara, mas os velhos hábitos mantinham-se. Mal a noite caía, o
medo brocava o coração dos homens. Os campos vizinhos tornavam-se para eles o
palco de estranhos acontecimentos. Feiticeiros e bruxas aproveitavam a
escuridão para realizarem as suas reuniões nocturnas, ao mesmo tempo que os lobos
esfomeados vagueavam em busca de alimento. Há poucas semanas ainda, nas margens
escarpadas do Bisagno, tinham sido encontrados os cadáveres de dois pastores
retalhados pelas terríveis mandíbulas dos carnívoros, tendo então sido enterrados
à pressa. Domenico ainda se lembrava do grito rouco da mãe deles quando os corpos
foram descidos para a sepultura cavada à pressa: um pranto dilacerante, inumano,
que parecia ecoar os bramidos dos animais selvagens.
Era para se proteger que, todas as
noites, a cidade se enclausurava e confiava a sua guarda aos archeiros de atalaia
que velavam para que ninguém entrasse nem saísse da cintura da muralha. Bem seguros,
os habitantes entregavam-se às suas ocupações habituais. As mulheres afadigavam-se
em frente aos fogões. Os homens iam para a taberna mais próxima comentar as últimas
novidades, como a chegada de uma carraca proveniente de Quios ou de Caifa ou a próxima
venda de um lote de escravos comprados em Constantinopla. Longe do olhar dos pais,
cortejos de crianças travessas desciam as ruelas em declive a surripiarem aqui e
ali um fruto ou a deitarem ao chão bancas de mercadorias.
Eram tantas as cenas que ali tinham
lugar que ninguém veria, pelo menos naquela noite, os dois soldados de cavalaria
abrirem caminho na penumbra, a pouca distância da cidade. Um deles não era
seguramente um desconhecido. Como se soubesse que lhe iam recusar a abertura da
porta, instintivamente, dirigira-se para a Hospedaria da Loba Zarolha, confiando
a sua montada a um gaiato para que a levasse para a estrebaria. Com o seu companheiro
de rosto dissimulado por um capuz, entrou na grande sala pouco iluminada por velas
de sebo de má qualidade, onde as criadas repeliam aos risinhos os avanços dos clientes
habituais, pobres joões-ninguéns que ali tinham ido em busca de um pouco de calor
e consolo depois de um dia de trabalho penoso.
Os dois homens tinham-se sentado em
silêncio num canto próximo da lareira. O mais velho atirara algumas moedas para
cima da mesa e pedira vinho, pão e queijo. Beberam e comeram sem prestar atenção
aos que estavam mais próximo. Ao serão, bem mais tarde, o mais velho
intrometera-se nas conversas. Todos comentavam a novidade trazida nessa mesma manhã
pelos marujos sobre a queda de Constantinopla às mãos dos turcos». In Patrick
Girard, Cristóvão Colombo, O Viajante do Infinito, 2011, Editorial Presença,
Lisboa, 2013, ISBN 978-972-235-138-6.
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