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Assassínio à porta dell’Olivella
«(…) Bartolomeo Costapelli, um cardador,
não parava de vituperar os geegos: foi um justo castigo para esses cães heréticos,
que se recusam a reconhecer a autoridade do papa. O irmão António, o guarda-portão
de San Stefano, disse-me com a voz trémula de indignação que um dos chefes deles
ousara afirmar: mais vale o turbante dos turcos do que a mitra dos latinos. Não
entendi nada, mas aquilo devia ser muito grave, a julgar pela cólera dele. Que Nosso
Senhor Jesus Cristo e a Sua Santíssima Mãe nos livrem para sempre dessa corja! Segundo
Anna, uma criada, o viajante interrompera Costapelli com grosseria: que cristão
és tu, pobre idiota, a maldizer esses gregos para quem trabalhas. Pelas tuas mãos,
calculo que sejas tecelão. O que vais fazer quando tu e os teus deixarem de receber
as nozes-de-galha de que vos servis para tingirdes de negro as vossas malditas lãs?
São tão ásperas que só os pobres de Salerno ou de Nápoles aceitam comprá-las. Quando
o estômago te gritar de fome, suplicarás a Deus para que o turco se mostre tão condescendente
como os gregos. Estarás até pronto a abraçar a fé deles, desde que continuem a dispensar-te
essas famosas nozes.
Ninguém se lembrava de quem desembainhara
então uma faca para fazer o homem engolir semelhante blasfémia. Na penumbra, cintilara
uma lâmina. O viajante esvaíra-se em sangue nos braços do companheiro, enquanto
os clientes da taberna fugiam, abandonando os seus copos acabados de servir. Anos
mais tarde, Domenico lembrava-se amargamente dos aborrecimentos que lhe tinha
valido aquela rixa. Quando os archeiros vieram recolher o cadáver, ele ouvira um
deles reprimir uma blasfémia ao analisar os documentos encontrados no homem.
Algumas horas mais tarde, já ele tinha sido levado para casa do doge. O defunto
falou contigo? Não, senhor. Eu estava a guardar a Porta dell’Olivella como dita
o cargo que me confiou o vosso nobre pai. E que eu te retiro. Não protestes. Há
muito que aguardo a oportunidade de me vingar da humilhação pela qual um dia me
fizeste passar ao me recusares a entrada na cidade.
Agi de acordo com as ordens do vosso
pai, o ilustre Gianni Fregoso. Ordens essas que tiveste, aliás, o grande
cuidado de manter quando lhe sucedeste. Pouco importa. A tua taberna é um lugar
de vício e perdição. As tuas criadas vendem os seus corpos. O prior de San Stefano
queixou-se disso por diversas vezes. Até agora, aceitara fechar os olhos
perante esse escândalo, mas não voltarei a tolerar que a protecção de uma das portas
da cidade seja confiada a um vulgar rufião. Mas isso é condenar-me à ruína! Pierino
Fregoso avaliou-o com um ar ao mesmo tempo altivo e vagamente inquieto: tens a certeza
absoluta de que a vítima não disse a ninguém quem era? Foi o que a Anna me
jurou. A pobre rapariga estava toda perturbada por ter assistido a um assassínio.
O homem contentou-se em dizer as infelizes palavras que conheces, sem dúvida, sob
influência do vinho que tanto bebeu.
Bem quero acreditar em ti. Fica sabendo
que nunca ninguém deve saber o que se passou ontem na tua taberna. O assassino e
os seus cúmplices não estão prestes a vangloriar-se do seu acto. Não querem ficar
a espernear na ponta de uma corda. Tenho dúvidas quanto a isso, e aí está a tua
sorte. Para evitar o falatório, tenho de encontrar uma razão plausível para a cessação
das tuas funções como guarda da Porta dell’Olivella. A partir desta noite, a cidade
ficará a saber que, pelos teus distintos méritos, te confiei a gestão das terras
que possuo em Savona, onde irás instalar-te sem delongas. Sossega que serão apenas
alguns pomares e arpentes de vinha que te deixarão tempo livre para te dedicares
às outras tuas ocupações. Graças à minha bondade, eis-te proprietário de uma
loja e de uma casa contígua à Igreja de San Giulano, onde irás fazer as tuas orações.
Filippo Masetta, o meu tabelião, já redigiu uma escritura de venda fictícia, porque
de ti não exijo nenhum outro pagamento além do teu silêncio. Não me agradeças, porque
este presente fica-me mais barato do que o dinheiro que perderia se este assunto
viesse a lume. Levaria tempo demasiado a explicar-te. Dou-te mesmo como bónus António,
o escravo do morto, um mouro bastante robusto a julgar pelo que dizem os meus
archeiros, que tiveram alguma dificuldade em lhe deitar a mão. Faz as coisas de
modo a que ninguém saiba quem ele é, nem onde se encontra. Como vês, o teu desvalimento
é, porém, brando. Tu, filho de um rústico de Moconesi, eis-te agora dono das quatro
paredes onde irás viver a partir deste momento. É mais do que qualquer um dos teus
filhos conseguirá ter no final de uma vida de trabalho árduo. Desaparece da minha
vista antes que comece a arrepender-me da minha generosidade». In Patrick
Girard, Cristóvão Colombo, O Viajante do Infinito, 2011, Editorial Presença,
Lisboa, 2013, ISBN 978-972-235-138-6.
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