«(…) Lucille, sempre mais
prática, arranjou emprego na cidade, como secretária particular de um homem
que, necessitava de alguém fluente em francês e estenografia. Ia e vinha todos
os dias, no mesmo comboio que o tio Fred, mas nunca viajava com ele e, chovesse
ou fizesse bom tempo, ia de bicicleta para a estação enquanto ele ia a pé. As
raparigas tinham ambas decidido que o que queriam era uma vida social realmente
intensa e divertida e ficavam bastante ressentidas pelo facto de a casa
paroquial ser, para os seus amigos, impossível. No andar térreo havia apenas
quatro divisões: a cozinha, onde viviam as duas criadas descontentes; a escura sala
de jantar; o gabinete do pároco e a enorme e caseira sala de estar ou sala de
visitas. Na sala de jantar havia um fogão a gás. A sala de estar era o único
local onde ardia um bom fogão a lenha, porque aí reinava a Mater.
Era nesta divisão que a família
se reunia, à noite, depois do jantar, o tio Fred e o pároco jogavam
invariavelmente às palavras cruzadas com a avó. Então, Mater, estás pronta? N,
espaço, espaço, espaço, espaço, W: funcionário siamês. Eh? Eh? M, espaço,
espaço, espaço, espaço, W? A avó ouvia mal. Não, Mamã. Não é um M! N, espaço,
espaço, espaço, espaço, W: funcionário siamês. N, espaço, espaço, espaço,
espaço, W: funcionário chinês. Siamês. Eh? Siamês! Do Sião! Funcionário siamês!
Que é que poderá ser?, dizia a velha senhora com um ar de profunda reflexão,
dobrando as mãos por cima do arredondado do estômago. Os seus dois filhos
começavam a fazer-lhe sugestões, às quais ela respondia com um Ah! Ah. O pároco
era surpreendentemente hábil nas palavras cruzadas e o tio Fred dispunha de um
certo vocabulário técnico. Esta é certamente uma das difíceis, dizia a velha
senhora, quando todos ficavam calados, sem mais ideias.
Entretanto, Lucille sentava-se
num canto com as mãos tapando as orelhas, a fingir que lia, enquanto Yvette
desenhava nervosamente ou entoava melodias, num tom alto e exasperante para
ajudar ao barulho familiar. A tia Cissie estendia continuamente a mão para
levar chocolates à boca e os seus queixos trabalhavam sem parar. Vivia quase
exclusivamente de chocolates. Sentada na outra ponta da sala, metia outro
chocolate na boca e depois olhava de novo para a revista paroquial. A seguir levantava
a cabeça e via que eram horas de ir buscar a chávena de chá para a avó. Quando
ela saiu da sala, Yvette, exasperada e nervosa, quis abrir a janela. A sala
nunca estava arejada e ela sentia que cheirava à avó. E a avó, que ouvia mal,
ouvia perfeitamente quando não era preciso. Abriste a janela, Yvette? Creio que
te devias lembrar que há pessoas mais velhas do que tu aqui na sala, dizia ela.
Está abafado! É insuportável! Não
admira que todos nós estejamos sempre a apanhar constipações. - Ora, a sala é
suficientemente grande e está um bom lume a arder na lareira. A velha
estremeceu um pouco. Uma corrente de ar que nos pode matar a todos. Não é
nenhuma corrente de ar, gritou Yvette. Apenas uma lufada de ar fresco. A velha
tremeu de novo e disse: estou a sentir! O pároco, em silêncio, avançou para a
janela e fechou-a firmemente, sem olhar para a filha, pois não gostava nada de
a contrariar. Mas ela tinha de saber como era! O jogo de palavras cruzadas,
inventado pelo próprio Satanás, continuava até a avó ter bebido o seu chá e
preparar-se para ir para a cama. Então vinha a cerimónia das boas-noites! Toda
a gente se levantava. As raparigas aproximavam-se para serem beijadas pela
velha cega. O pároco dava-lhe o braço e a tia Cissie seguia-os com uma vela.
Mas isto era já perto das nove
horas da noite, apesar de a avó estar realmente a ficar muito velha e devesse
ir para a cama mais cedo. Mas quando ela já se encontrava deitada, não conseguia
adormecer, enquanto não chegasse a tia Cissie. Sabem, dizia a avó, nunca dormi
sozinha. Durante cinquenta e quatro anos, nunca dormi uma noite sem o braço do pai
à minha volta. Quando ele nos deixou, tentei dormir sozinha. Mas era certo e
sabido que logo que os meus olhos se fechavam para dormir o meu coração quase
que saltava para fora do meu corpo e ali ficava eu, cheia de palpitações. Oh,
podem pensar o que quiserem, mas era uma experiência terrível, depois de cinquenta
e quatro anos de uma perfeita vida de casados! Teria rezado para morrer em
primeiro lugar, mas o pai, bom, não creio que ele tivesse resistido a tal
golpe...
Assim,
a tia Cissie dormia com a avó. Mas odiava fazê-lo. Dizia que ela não era capaz
de dormir. Deste modo, ficou cada vez com pior aspecto, cada vez mais
acabrunhada, e a comida na casa cada vez pior e a tia Cissie teve de fazer uma
operação. Mas a Mater levantava-se, como sempre, perto do meio-dia e, durante o
almoço, presidia à refeição da sua cadeira de braços, com o estômago saliente,
o rosto vermelho e oscilante, cheio de uma espécie de horrível majestade, uma
face a cair da testa ampla e onde espreitavam uns olhos azuis que nada viam. O
cabelo branco começava a escassear e tinha até um ar um pouco indecente. Mas o
pároco, jovialmente, dirigia-lhe piadas, que ela fingia desaprovar. No entanto,
sentia-se perfeitamente satisfeita consigo mesma, ali sentada com aquela
obesidade antiga e, depois das refeições, fazendo sair o ar do estômago,
premindo o peito com uma das mãos, arrotava, num prazer físico grosseiro». In DH
Lawrence, A Virgem e o Cigano, 1926, Editora Assírio & Alvim, 1984,
colecção O Imaginário, ISBN
978-972-370-164-7.
Cortesia
de Assírio & Alvim/JDACT