A
intriga de Compostela 1140-1142
«A mais vil e miserável intriga lançada
sobre o meu melhor amigo, Afonso Henriques, ressuscitou, naquela tarde, no interior
de uma Catedral de Compostela a tresandar a incenso, quando o seu primo direito
e imperador de toda a Hispânia, Afonso VII, a lançou como arma de arremesso contra
o príncipe de Portugal. Coberto por uma dalmática escarlate, digno e vaidoso como
sempre, com a coroa imperial que herdara do seu avô Afonso VI pousada no topo da
cabeça, o rei dos Cinco Reinos, Leão, Castela, Galiza, Navarra e Aragão, decidiu
transformar um mexerico obscuro, remetido há trinta anos aos baús do esquecimento,
num argumento político que visava enfraquecer, ou até eliminar, a justa pretensão
de Afonso Henriques a reinar em Portugal. São assim os poderosos, destroem por
capricho.
Apesar de ter sido derrotado, em
Cerneja, pelos portucalenses, três anos antes, e de, em Tui, ter prometido ao primo
reconhecê-lo rei de Portugal, Afonso VII pressentiu naquela rocambolesca história
um poder sombrio e desatou a contá-la pelos quatros cantos da Península. É certo
que Afonso Henriques não tinha cumprido as exigências do imperador, a que se comprometera
nos acordos de Tui. Não havia ainda conquistado Santarém e Lisboa, perdera a relíquia
da Terra Santa, que devia ter entregue ao papa, e também se recusara a ir a Toledo,
no Verão, prestar vassalagem ao primo direito. No entanto, podia contrapor que vencera
trinta mil muçulmanos na batalha de Ourique, onde desbaratara uma coligação de
cinco reis mouros, e humilhara o líder destes e aspirante a califa, o príncipe Ismar,
de Córdova, auxiliando de forma indirecta Afonso VII, que assim conquistou uma das
praças fortes da Andaluzía, Colmenar de Oreja.
Os incómodos entre os dois primos
podiam ser facilmente resolvidos com uma conversa diplomática, não sendo, portanto,
necessária qualquer nova confrontação bélica e muito menos uma exibição de
astúcia tão suja e maligna do filho da já falecida rainha Urraca. Quando, anos mais
tarde, tudo se esclareceu, concluí que Afonso VII, que abominava a sua mãe por a
considerar malévola, inconstante e desconfiada, afinal tinha a quem sair, pois
usou armas semelhantes às da progenitora. Para nascer, Portugal teve de lutar contra
inimigos poderosos, que nos atingiam com duros golpes. Foi o arcebispo de
Compostela, Diogo Gelmires, a alma danada que pousou a taça do veneno nas mãos do
imperador de Leão, ao contar-lhe aquela vergonhosa infâmia. Diz-se que o imperador
ficou espantado ao escutá-lo. Tudo acontecera trinta anos antes e nunca a irrequieta
mãe, dona Urraca, lhe mencionara alguma vez essa possibilidade. Mas uma intriga
poderosa faz aos espíritos o mesmo que a resina dos pinheiros às mãos: cola-se a
elas e é muito difícil de limpar. Principalmente quando a falácia pode ser
usada com proveito próprio.
Naqueles tempos, Afonso VII nutria
um certo fascínio pelo primo direito, mais novo e mais alto. Afonso Henriques era
um valoroso combatente, um cristão enérgico envolto numa aura épica, abençoado pela
Providência e capaz de feitos extraordinários. Porém, ao mesmo tempo que o admirava
e reconhecia alguma legitimidade às suas pretensões, o imperador receava o príncipe
de Portugal e invejava-o. Tinha ciúmes dele e do seu sucesso, e temia que aquela
força da natureza, aquele gigante intrépido e corajoso, se transformasse no único
adversário peninsular que lhe podia disputar o império. O conhecimento daquela
lenda esdrúxula foi, pois, um bálsamo inesperado, que Afonso VII aproveitou
como uma arma subtil, mas eficaz, para minar de forma subterrânea a honra do seu
primo. Se existissem dúvidas sólidas sobre a identidade de Afonso Henriques, todo
o seu crescente poder se desmoronaria... Afinal, era ele quem dizia ser? Era mesmo
filho do conde Henrique e de dona Teresa de Portugal? O arcebispo Gelmires, prestes
a expirar, fora um convincente narrador, desfiando pormenores mal esclarecidos.
Trinta anos antes, um menino nascera,
mas os seus pais haviam ficado pasmados quando lhe viram as pernas atrofiadas. O
mocinho era aleijadinho e Teresa e Henrique entristeceram. Talvez por isso, mas
também porque era o costume da época, entregaram o recém-nascido à família dos Moniz
de Ribadouro, que teria de o criar e educar. E foi isso que estes fizeram, com doçura
e carinho, persistência e dedicação extrema. Meu pai, Egas Moniz, e minha mãe, Dordia
Viegas, trataram do petiz definhado com tal empenho que aos três anos o menino já
corria. Minha mãe jurava a todos, e meu pai secundava, que aquilo acontecera por
vontade celeste de Nossa Senhora! Haviam sido as benditas águas do ribeiro de Cárquere
a salvar o enfermo, razão pela qual meu pai mandara edificar no local uma
igreja, junto ao mosteiro que ali existia e onde eram recebidas muitas outras crianças,
doentes ou rejeitadas». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal,
Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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