sexta-feira, 14 de julho de 2017

Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Contudo e para seu azar, as coisas foram de mal a pior. Nesse mês de Agosto, o legado do papa, o cardeal Guido Vico, deslocou-se a Coimbra para preparar o encontro de Zamora»

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A Paz de Zamora. Coimbra 1143
«(…) Deu meia-volta, saindo sem fazer barulho, mas nunca mais foi a mesma. Algo se estilhaçou dentro dela. Para sempre. O peito doeu-lhe violentamente e passou o resto da noite a chorar. Quando Afonso Henriques regressou à cama, já o dia nascia, fez de conta que estava a dormir. Ele era rei, podia fazer o que quisesse. Mas a lealdade cega que lhe tinha perdeu-se. Pela primeira vez em muitos anos, imaginou uma vingança, uma retribuição dolorosa. A partir dessa hora triste, à vontade secreta de retaliação Chamoa juntou, como ingredientes num cozinhado, um instinto de sobrevivência apurado e uma manha submersa, escondida em sorrisos forçados. Não fez cenas disparatadas, nem partiu para Tui, onde teria de aturar a sua insuportável mãe. O pai, conde de Toronho, estava com a cabeça a prémio e, além disso, Fernando Afonso e Pedro Afonso eram seus filhos. Permaneceria junto a Afonso Henriques, para que não se esquecessem deles.
Contudo e para seu azar, as coisas foram de mal a pior. Nesse mês de Agosto, o legado do papa, o cardeal Guido Vico, deslocou-se a Coimbra para preparar o encontro de Zamora, onde Afonso Henriques iria avistar-se com o imperador. Este reconheceria como rei de Portugal o seu primo, mas obrigava-o também a uma permanente vassalagem nos territórios da Baixa Galiza. Além disso, e como o príncipe portucalense não conquistara Lisboa nem se apoderara da relíquia da Terra Santa, para satisfazer o papa teria mesmo de casar com uma princesa da Sabóia. Não tendes alternativa, afirmou nesse dia meu pai, Egas Moniz. E o papa necessita de fundos, recordou João Peculiar.
Guido Vico acrescentou que Inocêncio II tinha de contribuir para a defesa de Jerusalém. Quatro onças de ouro seriam bem-vindas, afirmou o cardeal, com o topete próprio dos poderosos. Todos os anos... Um rumor indignado percorreu a nave central da Sé de Coimbra e meu pai afirmou que casar o príncipe saía bem mais barato! Então e pela primeira vez, Afonso Henriques admitiu a solução. Secundarizar Chamoa era-lhe custoso, mas, sem outras opções, rendeu-se: Egas Moniz, falai com a casa da Sabóia.
Um murmúrio entusiasmado percorreu a assistência, enquanto o príncipe de Portugal me olhava, amargurado com a terrível empreitada que tinha pela frente: explicar à sua amada que nunca seria rainha de Portugal. Podeis falar com e1a, Lourenço Viegas?, pediu-me, atrapalhado». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT