A
Paz de Zamora. Coimbra 1143
«(…) Deu meia-volta, saindo sem fazer
barulho, mas nunca mais foi a mesma. Algo se estilhaçou dentro dela. Para sempre.
O peito doeu-lhe violentamente e passou o resto da noite a chorar. Quando Afonso
Henriques regressou à cama, já o dia nascia, fez de conta que estava a dormir. Ele
era rei, podia fazer o que quisesse. Mas a lealdade cega que lhe tinha perdeu-se.
Pela primeira vez em muitos anos, imaginou uma vingança, uma retribuição dolorosa.
A partir dessa hora triste, à vontade secreta de retaliação Chamoa juntou, como
ingredientes num cozinhado, um instinto de sobrevivência apurado e uma manha submersa,
escondida em sorrisos forçados. Não fez cenas disparatadas, nem partiu para Tui,
onde teria de aturar a sua insuportável mãe. O pai, conde de Toronho, estava com
a cabeça a prémio e, além disso, Fernando Afonso e Pedro Afonso eram seus filhos.
Permaneceria junto a Afonso Henriques, para que não se esquecessem deles.
Contudo e para seu azar, as coisas
foram de mal a pior. Nesse mês de Agosto, o legado do papa, o cardeal Guido Vico,
deslocou-se a Coimbra para preparar o encontro de Zamora, onde Afonso Henriques
iria avistar-se com o imperador. Este reconheceria como rei de Portugal o seu primo,
mas obrigava-o também a uma permanente vassalagem nos territórios da Baixa Galiza.
Além disso, e como o príncipe portucalense não conquistara Lisboa nem se
apoderara da relíquia da Terra Santa, para satisfazer o papa teria mesmo de casar
com uma princesa da Sabóia. Não tendes alternativa, afirmou nesse dia meu pai, Egas
Moniz. E o papa necessita de fundos, recordou João Peculiar.
Guido Vico acrescentou que Inocêncio
II tinha de contribuir para a defesa de Jerusalém. Quatro onças de ouro seriam bem-vindas,
afirmou o cardeal, com o topete próprio dos poderosos. Todos os anos... Um rumor
indignado percorreu a nave central da Sé de Coimbra e meu pai afirmou que casar
o príncipe saía bem mais barato! Então e pela primeira vez, Afonso Henriques admitiu
a solução. Secundarizar Chamoa era-lhe custoso, mas, sem outras opções, rendeu-se:
Egas Moniz, falai com a casa da Sabóia.
Um murmúrio entusiasmado percorreu
a assistência, enquanto o príncipe de Portugal me olhava, amargurado com a terrível
empreitada que tinha pela frente: explicar à sua amada que nunca seria rainha
de Portugal. Podeis falar com e1a, Lourenço Viegas?, pediu-me, atrapalhado». In Domingos
Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN
978-989-741-713-9.
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