A
intriga de Compostela 1140-1142
«(…) O Trava permaneceu silencioso,
ligeiramente enjoado com o excesso de incenso que pairava na catedral, mas sobretudozangado
com a impossibilidade de lutar numa batalha onde poderia finalmente eliminar
Afonso Henriques. Toldado pela ira que sempre o consumia, o importante nobre galego
demorou a aceitar que a língua viperina dos homens pode ser bem mais eficaz do que
as lanças pontiagudas que usam nos combates.
Meus queridos filhos e netos, foi,
portanto, assim que renasceu a intriga de Compostela, uma perturbadora
história que me perseguiu durante anos, não só porque punha em causa a identidade
do meu melhor amigo e em breve rei de Portugal, mas também porque a sua fantasmagórica
sombra me envolvia. Se aquela ignóbil fraude fosse verdadeira, o mais forte candidato
a ser o verdadeiro Afonso Henriques era eu, Lourenço Viegas, o filho mais velho
de Egas Moniz! Na ânsia de esclarecer tão doloroso imbróglio, tive de recuar até
àquele dia na Catedral de Compostela e ainda mais atrás, à época da morte do pai
de Afonso Henriques, reconstituindo o que se passou com a minúcia de um ourives
minhoto. Vivi anos atormentado pela mera possibilidade de nas minhas veias correr
sangue real portucalense e a minha forte amizade ao meu rei foi posta à prova.
Enquanto nascia em Portugal um reino novo, no meu coração morava uma angústia desassossegada,
um pesadelo sem fim, que hoje vos começo a contar e que só terminaria quando
conquistámos a bela cidade de Lisboa, sete anos mais tarde.
Tui. Maio de 1140
Os meus sogros, Gomes Nunes e
Elvira Peres Trava, formavam um casal amargo de improváveis sobreviventes. Amor
e perigo não dançam bem juntos e trinta anos depois do matrimónio eles eram dois
corações gastos, forçados a uma convivência desagradável, num território fronteiriço
fustigado por conflitos turbulentos. Tanta perturbação havia cavado a sepultura
onde jazia a ternura mútua inicial, que produzira duas filhas: Maria Gomes, a minha
mulher, e Chamoa Gomes, a paixão de Afonso Henriques.
O bom Gomes Nunes nascera portucalense,
mas com o casamento recebera o condado de Toronho, uma faixa de terreno entalada
entre a Galiza e o Condado Portucalense. Sem grandes riquezas ou tropas, o meu sogro
dobrara a cerviz a galegos, leoneses ou portucalenses, numa habilidade permanente
mas cansativa, cujo objectivo sempre fora a manutenção do título e do castelo.
Trinta e tal anos antes, desposar
uma Trava parecera-lhe um passo sólido e uma certeza de tranquilidade, pois Elvira
pertencia à mais relevante estirpe da Galiza. Só que os ventos do destino
haviam pregado uma partida ao casal nobre de Tui, e quando Afonso Henriques
disputou o Condado Portucalense à mãe e ao amante dela, Fernão Peres Trava, a família
dividira-se. Elvira foi para um lado, Chamoa e Maria Gomes para o outro, e mais
se abriu o fosso quando a primeira se apaixonou por Afonso Henriques.
Torcidos por tantos imbróglios, os
meus sogros já quase não se falavam e não partilhavam a cama. Irrequieta, palavrosa
e mandona, Elvira Peres Trava divertia-se com um amante em Compostela e nem se ralava
que o marido soubesse, para melhor o humilhar. Quanto ao pacato Gomes Nunes,
bonacheirão e pouco dado ao orgulho, vingava-se nas padeiras de Tui, mas nos seus
olhos só se via um cobarde temor do futuro. Dizia-se que receava ser envenenado,
embora a mestria de minha sogra na cozinha, cuja saborosa categoria posso confirmar,
nunca se tenha aliado a uma vontade criminosa.
Infeliz, o meu sogro só amaciava o
coração com as ocasionais visitas dos netos. Maria Gomes e eu havíamos tido dois
filhos, e Chamoa, quatro, três do seu primeiro marido, Paio Soares, e um quarto
de um primo direito, Mem Tougues, também ele um Trava. No entanto, esses seis
rapazes, que por vezes apareciam em Tui, raramente eram o alvo das atenções da
avó, sempre desligada e arisca, só confortando a existência do avô». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras,
2017, ISBN 978-989-741-713-9.