«(…) Não sabia que recebíamos mendigas
no convento, abadessa. Mariana Castilho fingiu não ter ouvido a indelicadeza de
Madalena Máxima Miranda, uma monja que muito tinha pago ao entrar para Odivelas.
Com um gato persa ao colo, acariciava o pêlo do bicho como se fosse o peito de
um amante. Interroguei-me se tinha fugido de um casamento combinado com outro
fidalgo de igual importância; se a maternidade a enojava; se a humilhação de
uma traição masculina, prática comum, a aterrorizava; se a ideia das obrigações
matrimoniais a repugnava. Saberia ela dançar? Gostaria do cheiro de homem? Também
não entendo, abadessa. Já não basta uma irmã pobre?
Carolina Augusta era da mesma
laia: birrenta, insegura e muito invejosa. Eu era demasiado escura, alta e
forte, demasiado do povo, sem dinheiro ou nome, Todas me olhavam como uma aberração.
A Paula vai conhecer a sua cela. A sua irmã pode levá-la. Ficarão próximas uma da
outra. A Luz mantinha-se de cabeça baixa. Tão humilhada e pequena, a minha irmã
mais velha. Não era assim quando morávamos juntas. Percebi exactamente o que se
passava naquele convento. Fechei os punhos, preparando-me para a guerra. A minha
irmã pousou suavemente a mão no meu ombro. Vamos, querida. Fiz menção de ignorar
o pedido. Eu levo-te. Que se transformou numa súplica. A Luz rejeitava o
confronto. Obedeci, contrariada. Fi-lo por lealdade ao sangue, no convento há anos,
domesticada como o gato. Aqui as regras não são diferentes das regras lá de fora,
Paula. Fidalgas são mais gente do que nós. Pensava que éramos todas monjas,
iguais aos olhos de Deus. Aos olhos de Deus somos todos iguais. Aqui dentro,
continuamos todas diferentes.
Quando cheguei à minha cela vi o que
me esperava diante da janela sem esperança: uma cama dentro de grades, como numa
capoeira, um altar carunchoso, um armário sem uma perna. Mas o que me deixou em
alvoroço não foi a cela em si, foi ter passado por outras de porta aberta e ter
visto o luxo que ali imperava. Veludos e madeiras, ouro e prata, espelhos e vidros.
Jurei a mim mesma que um dia, custasse o que custasse, haveria de ter uma cela infinitamente
mais luxuosa do que qualquer uma daquelas. E não era porque estivesse habituada
ao luxo e ao conforto. Era apenas porque a ideia de inferioridade nunca me
assentou.
Vou
mostrar-te onde te podes refrescar e trocar de roupa. O hábito que vais usar é antigo.
Não temos dinheiro para um novo. Este que estou a usar foi-me dado por... O tempo
em que a Luz se deliciava com negras e homens atrás de negras, numa sensualidade
rebelde, tinha passado. Tinha sido esmagado pelo convento. Éramos felizes antes.
Voltei do banho, embrulhada num manto envelhecido. Entrei na cela e, de cima da
cama, tinham desaparecido as roupas. Procurei por todo o lado, o manto teimava em
escorregar até que, com um puxão, alguém mo retirou pelas costas. Apenas tive tempo
de me virar e vislumbrar a cauda do gato ao colo de quem corria. As roupas estão
no claustro da Moura, noviça. Risos vindos do corredor. Comecei a tiritar. Preparei-me
para gritar. A sua irmã não a ouve. Mandámo-la para o jardim, bem longe. A voz não
acompanhava uma cara, mas eu sabia a quem pertencia». In Patrícia Muller,
Madre Paula, Edições ASA II, 2014, ISBN 978-989-232-783-9.
Cortesia de ASA/JDACT