«(…)
Vai correr, então. Mostra os sapatos, são bons. Foi a tua mãe que os comprou? Mandou
o motorista. Ele tem filhos da minha idade, está mais habituado. Vai, então.
Cuidado com os lacraus. Corri até à beira da charca, mas fiquei entre as
árvores, que o sol ainda ia alto e estava calor. As palavras continuavam a
aparecer na minha cabeça como se alguém mas ditasse miligrã, oxálida, xarel e
foi quando vi o Tinito, todo nu, entretido com o seu próprio membro. Negro.
Assustador. Acho que há um Tinito ou uma Tinita na vida de todos nós. Pode ser
a criadita descarada, a filha da vizinha, o rapaz das pizzas, o sabidão da
turma. Este Tinito, que se chamava Justino, era um cigano que os pais tinham
deixado à minha avó como penhor de um empréstimo que ela lhes fez. Era uma
criança linda de dois anos, e por mais que a minha avó gritasse que não queria
penhor nenhum (porque o dinheiro, já se sabe, havia de acabar por ser dado),
muito menos um menino para criar, eles picaram a mula e desapareceram na curva
da estrada, não sem recomendar que acautelassem a criança do mau-olhado.
O
miúdo foi crescendo por ali, caladinho, muito afeiçoado aos animais, a minha
avó registou-o, para poder mandá-lo à escola, com o nome improvável de Justino
Trovoada, que era a alcunha do pai. Estudou até ao 9º ano, com relativa
facilidade, era um ás em matemática, medíocre em português, mas não quis
continuar. Os bichos eram a sua paixão e a avó Jacinta pô-lo a tomar conta das
vacas e dos cavalos. Era um criado da sua casa, devidamente assalariado e assim
as coisas deixavam de ser equívocas. O rapaz é seu neto? Não, não, é meu
afilhado. A avó Jacinta era uma viúva ainda fresca, o rapaz um matulão
incrivelmente bem-parecido com olhos negros e caracóis na testa, bermudas e
t-shirt Benetton, que sabia misturar o odor a cavalo com um toque de lavanda. Mas
de um modo geral chamavam-lhe o cigano e ele não escondia a sua origem.
Gabava-se até, para as muitas raparigas que desviavam caminho para passar no
monte da minha avó, da sua aristocracia cale. Sou neto de rei, dizia, embora
não fizesse a mais remota ideia de quem era o avô. Esquecera os pais e só sabia
como fora ali parar porque a Maria e a avó Jacinta lho tinham contado como se
fosse uma história de fadas. Chegou a pensar que era um príncipe encantado e
daí à convicção de ser neto de rei foi um pequeno passo.
Lá
estava o Tinito na beira da charca, ao sol, com aquele corpo como eu só tinha
visto num livro sobre escultura grega na biblioteca do meu avô, mas em moreno, a
deliciar-se com o seu rapidíssimo jogo de mão. Depois meteu-se na água, deu
meia dúzia de braçadas e viu-me quando vinha a sair. Veio ter comigo. Viste,
não viste? Então agora tens que experimentar. Não, não. Dá fraqueza nos pulmões
e até cegueira e até nascem pêlos na palma da mão. Ele virou as palmas claras
para mim, exibindo-as como uma evidência. Vá, experimenta. Eu ensino-te.
Despe-te. Foi ele que fez. Eu não despreguei os olhos dos seus olhos negros, a
fingir que aquilo ali em baixo não me pertencia. E de repente aconteceu. A
descoberta tomou conta de mim com tal violência que pensei que ia morrer. Depois
fomos os dois ao banho. A charca (que hoje está seca) tinha água que dava ao
Tinito pela cintura, a mim pelo pescoço. Brincámos como dois miúdos que éramos,
o Tinito ia fazer dezoito anos, eu treze, e de repente senti-me enjoado,
maldisposto, com uma urgência enorme de voltar para casa, para o meu quarto,
para a minha cama, para a minha cortina de renda. Entrei só de calções, meio
molhado e pus-me a vomitar». In Rosa Lobato Faria, A Alma Trocada,
Edições ASA, Autores Contemporâneos de Língua Portuguesa, Porto, 1a edição, 2007,
ISBN 978-972-415-283-7.
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