«(…) Ora, ele não faz ver nada do
que o próprio quadro representa. Seu olhar imóvel vai captar à frente do
quadro, nessa região necessariamente invisível que forma a sua face exterior,
as personagens que ali estão dispostas. Em vez de girar em torno de objectos
visíveis, esse espelho atravessa todo o campo da representação, negligenciando
o que aí poderia captar, e restitui a visibilidade ao que permanece fora de
todo olhar. Mas essa invisibilidade que ele supera não é a do oculto: não contorna
o obstáculo, não desvia a perspectiva, endereça-se ao que é invisível ao mesmo
tempo pela estrutura do quadro e por sua existência como pintura. O que nele se
reflecte é o que todas as personagens da tela estão fixando, o olhar recto
diante delas; é, pois, o que se poderia ver, se a tela se prolongasse para a
frente, indo mais para baixo, até envolver as personagens que servem de modelos
ao pintor. Mas é também, já que a tela se interrompe ali, dando a ver o pintor
e seu ateliér, o que está exterior ao quadro, na medida em que ele é quadro,
isto é, fragmento rectangular de linhas e cores, encarregado de representar
alguma coisa aos olhos de todo espectador possível. No fundo da sala, ignorado
por todos, o espelho inesperado faz brilhar as figuras que o pintor olha (o
pintor e sua realidade representada, objectiva, de pintor trabalhando); mas
também as figuras que olham o pintor (nessa realidade material que as linhas e
as cores depositaram sobre a tela). Estas figuras são, uma e outra, igualmente
inacessíveis, mas de modo diferente: a primeira, por um efeito de composição
que é próprio ao quadro; a segunda, pela lei que preside à existência mesma de
todo quadro em geral. Aqui, o jogo da representação consiste em conduzir essas
duas formas de invisibilidade uma ao lugar da outra, numa superposição instável,
e em restituí-las logo à outra extremidade do quadro, a esse pólo que é o mais
altamente representado: o de uma profundidade de reflexo na reentrância de uma
profundidade de quadro. O espelho assegura uma metátese da visibilidade que incide
ao mesmo tempo sobre o espaço representado no quadro e sua natureza de representação;
faz ver, no centro da tela, aquilo que, do quadro, é duas vezes necessariamente
invisível. Estranha maneira de aplicar ao pé da letra, mas invertendo-o, o
conselho que o velho Pachero dera, ao que parece, ao seu aluno, quando
trabalhava no ateliér de Sevilha: a imagem deve sair da moldura.
Mas talvez seja tempo de nomear
enfim essa imagem que aparece no fundo do espelho e que o pintor contempla à
frente do quadro. Talvez valha a pena fixar de vez a identidade das personagens
presentes ou indicadas, para não nos atrapalharmos infinitamente nestas
designações flutuantes, um pouco abstractas, sempre susceptíveis de equívocos e
de desdobramentos: o pintor, as personagens, os espectadores, as imagens. Em
vez de prosseguir sem fim numa linguagem fatalmente inadequada ao visível,
bastaria dizer que Velásquez compôs um quadro; que nesse quadro ele se representou
a si mesmo no seu ateliér, ou num salão do Escorial, a pintar duas personagens
que a infanta Margarida vem contemplar, rodeada de aias, de damas de honor, de
cortesãos e de anões; que a esse grupo pode-se muito precisamente atribuir
nomes: a tradição reconhece aqui dona Maria Agustina Sarmiente, ali, Nieto, no
primeiro plano, Nicolaso Pertusato, bufão italiano. Bastaria acrescentar que as
duas personagens que servem de modelo ao pintor não são visíveis, ao menos directamente;
mas que podemos distingui-las num espelho; que se trata, sem dúvida, do rei
Filipe IV e de sua esposa Mariana.
Esses nomes próprios
constituiriam indícios úteis, evitariam designações ambíguas; eles nos diriam,
em todo o caso, o que o pintor olha e, com ele, a maioria das personagens do
quadro. Mas a relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita. Não
que a palavra seja imperfeita e esteja, em face do visível, num déficit que em
vão se esforçaria por recuperar. São irredutíveis uma ao outro: por mais que se
diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que
se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar
onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aquele que
as sucessões da sintaxe definem». In Michel Foucault, As Palavras e as Coisas,
1966, Livraria Martins Fontes Editora, 1981, 2000, ISBN 853-360-997-3.
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