quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Diário do conde de Sarzedas. Vice-rei do Estado da Índia (1655 -1656). Artur T. Matos. «Cerca de 1700 pessoas, incluindo 500 soldados, haviam embarcado em Lisboa com destino a Goa e reduzido foi o número dos que pereceram na viagem»


Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Em 3 de Julho entram na terra do Natal que fica a 32° 27' e, uma semana depois, deparam com quantidade de sargaços e grazinas que anunciavam a aproximação da extremidade da ilha de São Lourenço (Madagáscar), que só avistarão na tarde de 12, altura em que foi saudada pela armada. Costearam esta ilha com tempo limpo, vendo de dia árvores e de noite fogos, o que nem sempre acontecia, e, contrariando de algum modo o desejo de Manuel Castro Favila, capitão e piloto do patacho Santa Teresa que desejava escalar Moçambique, o vice-rei, depois de ouvir os capitães e pilotos mais experientes da armada, resolveu seguir directamente para a Índia, não obstante saber que aí aportaria em pleno mês de Agosto e com as restricções de aportamento impostas pelo período de monção. A 22 topam com mais sargaços e canas à tona da água, sinais da aproximação à ilha de Combro que, de facto, divisarão decorridos dois dias.
Se bem que o vento rijo e mar grosso que se fizeram sentir desde 6 de Agosto e se prolongaram até 15 tenham causado problemas e retardado bastante a navegação, o tempo bonançoso trazido pela lua cheia desse dia fez com que se decidisse buscar a terra, com a firme convicção de que, em breves dias, chegariam a Mormugão. De facto, na manhã de 20 foi avistada terra e, pelas 5 da tarde, aproximaram-se da nau Bom Jesus dois paraus, que há alguns dias aguardavam a armada trazendo a bordo os pilotos. No dia seguinte, pela 10 horas, dava entrada na barra de Mormugão toda a armada, salvando com artilharia as fortalezas que a defendiam. Estas corresponderam à saudação.
Apenas cinco meses havia durado a viagem. Tripulação experiente, comando seguro, condições meteorológicas favoráveis, inexistência de escalas, ausência de imprevistos: condições essenciais a uma viagem bem sucedida. O roteiro da navegação utilizado continuava a ser o do piloto de Lagos de finais de quinhentos, Vicente Rodrigues, ainda considerado em 1664 o mais experimentado e aprovado no que escreveo. Ao montar o cabo de Santo Agostinho, anotou Rodrigo Lobo Silveira no seu diário a grande proximidade da armada do porto da Baía, mas nem ele nem os demais capitães ou pilotos levantam a hipótese de o escalarem. Recorde-se que a paragem nesta cidade vinha a ser proibida desde o século anterior. O próprio roteiro de Vicente Rodrigues assim o recomendava. Aliás, a discussão em torno das escalas, e sobretudo a da Baía, arrastaram-se por todo o século XVII, com avanços e recuos, embora prevalecendo a proibição. As razões são desde cedo a pontadas: atraso que impossibilitava o carregamento das especiarias desse ano, estrago nas naus, a fuga de gente de navegação e outra, além da despesa com a tripulação.
Mas se a relativa proximidade da partida poderia, em princípio, dispensar a escala brasileira, já a de Moçambique tornava-se quase sempre necessária. A morosidade da viagem, o elevado número de doentes, a necessidade de reparações e reabastecimentos impunham esta paragem, considerada obrigatória não por determinação régia, mas exigida pela urgência de socorros. Todavia a viagem de 1655 dispensaria a escala, apesar da insistência do capitão do Santa Teresa, Manuel Castro Favila, invocando falta de lastro, água e vinho. Mas o vice-rei, determinado a entrar com todas estas embarcações juntas na barra de Goa e, percebendo que tudo eram desejos de ir a Moçambique, apressou-se a oferecer-lhe água, vinho e pipas vazias para encher de água salgada e assim resolver o problema do lastro.
Cerca de 1700 pessoas, incluindo 500 soldados, haviam embarcado em Lisboa com destino a Goa e reduzido foi o número dos que pereceram na viagem. A Bom Jesus da Vidigeira, talvez pelas melhores condições que oferecia, transportava mais de 660 pessoas, pelo que entendeu o vice-rei, para a ir aliviando, mandar transferir soldados e passageiros para os outros navios. Assim aconteceu com cerca de três dezenas de soldados remetidos para o patacho Santa Teresa e duas dezenas para a o galeão São Francisco, cuja população se ficava pelos 250 elementos. A gente de guerra havia sido organizada em quatro esquadras e, como era hábito, além de mostras feitas aos soldados, estes praticaram os rotineiros exercícios a bordo». In Artur Teodoro Matos, Diário do conde de Sarzedas, Vice-rei do Estado da Índia (1655 -1656), Lisboa, colecção Outras Margens, CNCDPortugueses, 2001, ISBN 972-787-052-X.

Cortesia de CNCDP/JDACT