«(…) Ora esta imensa revolução
abrangeu todo o norte do reino, justamente aquela região em que o poder régio
sofria maiores atropelos por parte de leigos e eclesiásticos. No resto do país
não eram precisas inquirições. Aí o regime municipal preservara, na prática, as
noções de direito público e o rei surgia como o senhor directo da população,
apesar das liberdades e privilégios concelhios. Que fez o rei com o resultado
dos depoimentos tão escrupulosamente registados pelos seus escrivães em longos
rolos de pergaminho? Aparentemente, nada. É uma das surpresas que este
período da acção política de Afonso III suscita a quem o examina. O mais
irritante, para o historiador, é não saber se este vazio se deve a uma lacuna
de informação ou se de facto o rei se limitou a entregar o cadastro ao mordomo-mor
para ele saber o que podia exigir aos mordomos locais como pagamento das rendas
devidas à coroa. Quem lê hoje o estendal de sonegações feitas pelos senhores
locais (ou interpretadas como tal pelos inquiridores) esperaria que o rei
tomasse medidas claras e vigorosas para assegurar a eficácia da cobrança. Ora,
se alguma coisa mudou, não restam disso vestígios evidentes. Não é impossível que
uma análise muito pormenorizada dos actos administrativos revelasse algumas
alterações da prática; mas para isso seria necessário proceder a levantamentos
minuciosos e sistemáticos sobre centenas ou milhares de documentos. Talvez um
dia algum investigador mais escrupuloso e paciente se disponha a tentar esta
tarefa de resultados incertos.
Se a documentação actualmente
existente é de facto representativa das acções e da política régia, pode então
admitir-se que Afonso III se limitou a consolidar as formas de execução prática
dos valores ideológicos representados pela escrita e pela imposição da lei,
pela fidelidade dos seus representantes locais, pelo respeito a eles devido e
pela difusão da noção de representação. Ou seja, por meio de uma política
administrativa que não deixou vestígios directos na documentação. Por meio da
eficácia burocrática. O mais provável é que se tenha verificado um
aperfeiçoamento gradual da máquina administrativa, e não uma mutação brusca. De
qualquer modo, o registo por escrito do foros e direitos devidos à coroa dotava
o soberano de uma força incomparável. A escrita foi a arma com que feriu de
morte o feudalismo. A verdade é que Afonso III pode mesmo ter adoptado uma
atitude contemporizadora e aparentemente passiva. O futuro mostraria que, se
passividade havia, era apenas aparente, porque a criação do meirinhado-mor, três
anos mais tarde, deve certamente considerar-se a efectiva medida tomada como
resposta, embora indirecta, à situação revelada pelas inquirições. Até lá pode
ter percebido que era preciso não assustar demasiado os seus rivais no
exercício do poder local. Passou todo o ano de 1259 e quase todo o de 1260
entre Santarém, Lisboa e Leiria, longe, portanto, do cenário senhorial
explorado pelos seus delegados. Talvez pretendesse tranquilizar os senhores
leigos e eclesiásticos que viram nas inquirições uma ameaça ao exercício do seu
poder nas terras onde dominavam.
Pode ter sido também a estratégia
política que inspirou algumas doações a bispos e mosteiros feitas por essa
ocasião, como o padroado da igreja de Cantanhede ao mosteiro de Lorvão, a
garantia dada ao arcebispo e cabido de Compostela de que os seus domínios em
Correlhã não seriam afectados ou a doação do padroado da igreja da Alcáçova de
Montemor-o-Velho ao bispo Egas Coimbra. Estas provas de liberalidade para com a
Igreja, todavia, não representam nenhuma generosidade excepcional e, de resto,
não aumentam durante os anos de 1259 e de 1260. Já antes tinha feito algumas. O
solene documento datado de 2 de Julho de 1259 em favor do mosteiro de Alcobaça
justifica-se pelo motivo da ampliação ou alargamento do meu reino e do
castelo de Marvão, pois se tratava de trocar a herdade da Aramenha que os
monges entregaram em troca de um reguengo em Beringel, que o rei posteriormente
havia de coutar em seu favor. Afonso III garantia, assim, a posse directa das
terras junto ao castelo de Marvão, cujo papel na defesa da fronteira era
importante». In José
Mattoso, O Triunfo da Monarquia Portuguesa, 1258-1264, Ensaio de História
Política, Revista Análise Social, vol.
XXXV, 2001.
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