terça-feira, 5 de setembro de 2017

A Princesa Traída por Pedro e Inês. Isabel Machado. «A gaguez invadiu o discurso do príncipe. Respirou fundo. O rei chegou-se à frente, aproximando o rosto do filho, e baixou a voz: juras que a infanta se mantém donzela?»

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Constança
Paço de Coimbra, Reino de Portugal, 1330
«(…) Precisava de ler nos olhos do filho até onde fora a desonra de Branca de Castela. Ajoelhado à sua frente, Pedro manteve a cabeça desgrenhada e castanha, de laivos ruivos, virada para as lajes do chão. Ergue-te, Pedro, comandou o pai, impaciente. O infante esticou as pernas e encarou o monarca. Afonso atentou-lhe no modo impetuoso, que mostrava nos menores gestos, na pressa com que levantara o corpo, na firmeza do olhar escuro sobre o pai. Um olhar de certezas, útil para reinar, mas inconveniente para a obediência. Esperava vergar-lhe aquela sanha, os modos de animal bravio. Ainda não lhe haviam crescido os pêlos da barba, mas já se lhe notavam as formas rijas dos braços, manejava a espada e a besta como poucos na sua idade. Trazia o chicote à cinta, sobre o vestido de lã até aos joelhos, como se fosse sair para uma caçada com os moços ruidosos da corte que acompanhavam os folguedos do herdeiro, mais dado à rua do que às subtilezas cortesãs. Naquela manhã, Afonso não estava disposto a mais um confronto com o infante, ainda dias antes a gritaria entre pai e filho a propósito do seu escasso interesse pelas lições deixara o paço em alvoroço. Adivinhava-se um mocetão voluntarioso no jovem príncipe, sempre ágil para pelejas.
O coração era grande, essa certeza já tinha Afonso formado. Pedro apiedava-se dos servos e aprazia-se no convívio com os aldeãos em qualquer parte do reino, nos vários paços onde a corte de Afonso IV se instalava, uma itinerância permanente. Rodeava-se de cães, a quem dava tratos de gente, não só para as caçadas mas também dentro de portas. Não era raro o príncipe ser encontrado de manhã rodeado pelos seus animais ao acordar. Estes excessos e desvairos para o pai eram coisa normal para o infante, e divertimento de rapazes sem gravidade para dona Beatriz que, embora rígida a educar, era menos severa do que o marido a avaliar o futuro rei. Teria tempo de se moldar às exigência do cargo, repetia ao soberano.
Mas Afonso IV precavia-se, de olho sempre posto nele, cuja desenvoltura em áreas não mencionáveis frente a damas deixava adivinhar tendências que não lhe davam repouso à mente. Esforçou-se para manter um tom amável: é urgente abafar o escândalo, que já chegou a Castela. Ainda poderá ser remediado, se alterares o teu capricho. Não me obrigareis a casar com a infanta! A escassa paciência do monarca finou-se logo ali: e por que não?! Não encontrarás melhor estirpe. Conhece-nos a língua e os costumes. E já é tua mulher. Pedro abanou a cabeça, fazendo dançar os caracóis que quase lhe chegavam aos ombros. Ripostou: é tola! Nunca poderia fazer dela rainha. Tem modos de criança. E corpo de mulher, cortou o pai. O príncipe hesitou, tentando deslindar a expressão do rei. Branca era enfermiça, parecia que se lhe esgotava a vida pelos membros franzinos..., toda a corte sabia que a menina não era normal. Parecia desengonçada como um boneco de trapos aos olhos do infante, a cor amarelinha do rosto a dar-lhe ar de cadáver antes do tempo, a pouca fala sem nexo, segundo línguas ainda mais viperinas do paço. Uma miséria... Poderia seu pai crer que se faria da pobre uma rainha de Portugal?
Comenta-se como lhe aprecias as formas!, vociferou o casto Afonso, mais crédulo na maledicência dos seus conselheiros do que nas palavras daquele filho, que já deitava olhar meigo sobre as damas. O rei temia que a herança da carne fraca do avô trovador de Pedro, Dinis, tivesse alastrado para o herdeiro. Ouvia-se na corte que o príncipe corria as mãos pela débil constituição da menina... Senhor, meu pai, Branca nem préstimo teria para gerar um herdeiro! A frase confirmou os receios mais obscuros de Afonso IV. - E como podes estar seguro disso sem teres atentado contra a sua honra? A gaguez invadiu o discurso do príncipe. Respirou fundo. O rei chegou-se à frente, aproximando o rosto do filho, e baixou a voz: juras que a infanta se mantém donzela?» In Isabel Machado, Constança, A Princesa Traída por Pedro e Inês, A Esfera dos Livros, 2015, ISBN 978-989-626-718-6.

Cortesia de EdosLivros/JDACT