Constança
Paço
de Coimbra, Reino de Portugal, 1330
«(…) Precisava de ler nos olhos do
filho até onde fora a desonra de Branca de Castela. Ajoelhado à sua frente, Pedro
manteve a cabeça desgrenhada e castanha, de laivos ruivos, virada para as lajes
do chão. Ergue-te, Pedro, comandou o pai, impaciente. O infante esticou as pernas
e encarou o monarca. Afonso atentou-lhe no modo impetuoso, que mostrava nos
menores gestos, na pressa com que levantara o corpo, na firmeza do olhar escuro
sobre o pai. Um olhar de certezas, útil para reinar, mas inconveniente para a obediência.
Esperava vergar-lhe aquela sanha, os modos de animal bravio. Ainda não lhe haviam
crescido os pêlos da barba, mas já se lhe notavam as formas rijas dos braços, manejava
a espada e a besta como poucos na sua idade. Trazia o chicote à cinta, sobre o vestido
de lã até aos joelhos, como se fosse sair para uma caçada com os moços ruidosos
da corte que acompanhavam os folguedos do herdeiro, mais dado à rua do que às subtilezas
cortesãs. Naquela manhã, Afonso não estava disposto a mais um confronto com o infante,
ainda dias antes a gritaria entre pai e filho a propósito do seu escasso interesse
pelas lições deixara o paço em alvoroço. Adivinhava-se um mocetão voluntarioso
no jovem príncipe, sempre ágil para pelejas.
O coração era grande, essa certeza
já tinha Afonso formado. Pedro apiedava-se dos servos e aprazia-se no convívio
com os aldeãos em qualquer parte do reino, nos vários paços onde a corte de Afonso
IV se instalava, uma itinerância permanente. Rodeava-se de cães, a quem dava tratos
de gente, não só para as caçadas mas também dentro de portas. Não era raro o
príncipe ser encontrado de manhã rodeado pelos seus animais ao acordar. Estes
excessos e desvairos para o pai eram coisa normal para o infante, e divertimento
de rapazes sem gravidade para dona Beatriz que, embora rígida a educar, era
menos severa do que o marido a avaliar o futuro rei. Teria tempo de se moldar às
exigência do cargo, repetia ao soberano.
Mas Afonso IV precavia-se, de olho
sempre posto nele, cuja desenvoltura em áreas não mencionáveis frente a damas deixava
adivinhar tendências que não lhe davam repouso à mente. Esforçou-se para manter
um tom amável: é urgente abafar o escândalo, que já chegou a Castela. Ainda poderá
ser remediado, se alterares o teu capricho. Não me obrigareis a casar com a infanta!
A escassa paciência do monarca finou-se logo ali: e por que não?! Não encontrarás
melhor estirpe. Conhece-nos a língua e os costumes. E já é tua mulher. Pedro
abanou a cabeça, fazendo dançar os caracóis que quase lhe chegavam aos ombros.
Ripostou: é tola! Nunca poderia fazer dela rainha. Tem modos de criança. E corpo
de mulher, cortou o pai. O príncipe hesitou, tentando deslindar a expressão do
rei. Branca era enfermiça, parecia que se lhe esgotava a vida pelos membros franzinos...,
toda a corte sabia que a menina não era normal. Parecia desengonçada como um boneco
de trapos aos olhos do infante, a cor amarelinha do rosto a dar-lhe ar de cadáver
antes do tempo, a pouca fala sem nexo, segundo línguas ainda mais viperinas do paço.
Uma miséria... Poderia seu pai crer que se faria da pobre uma rainha de Portugal?
Comenta-se como lhe aprecias as formas!,
vociferou o casto Afonso, mais crédulo na maledicência dos seus conselheiros do
que nas palavras daquele filho, que já deitava olhar meigo sobre as damas. O rei
temia que a herança da carne fraca do avô trovador de Pedro, Dinis, tivesse alastrado
para o herdeiro. Ouvia-se na corte que o príncipe corria as mãos pela débil
constituição da menina... Senhor, meu pai, Branca nem préstimo teria para gerar
um herdeiro! A frase confirmou os receios mais obscuros de Afonso IV. - E como podes
estar seguro disso sem teres atentado contra a sua honra? A gaguez invadiu o discurso
do príncipe. Respirou fundo. O rei chegou-se à frente, aproximando o rosto do filho,
e baixou a voz: juras que a infanta se mantém donzela?» In Isabel Machado, Constança, A
Princesa Traída por Pedro e Inês, A Esfera dos Livros, 2015, ISBN
978-989-626-718-6.
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