domingo, 10 de setembro de 2017

Madre Paula. Patrícia Muller. «Fiz ouvidos de mercador aos cochichos das outras monjas que muito se riram do meu embaraço nu. Comi, orei, reduzida a um silêncio paciente»

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«(…) Eu era nova. Ainda não tinha completado dezoito anos. Tinha vivido com os meus pais e as minhas irmãs numa casa de um beco pobre. Sabia que as mulheres e os homens fornicavam, riam alto e se beijavam entre canecas de vinho. Sabia que os homens podiam ser violentos com as mulheres porque tinham mais força e que as mulheres podiam dar cabo dos homens porque tinham meios menos óbvios. Mas não sabia que as mulheres podiam ser tão pérfidas umas com as outras, ao ponto de se humilharem mutuamente e pelos motivos mais disparatados. As mulheres não se amam entre si. E isso torna-as mais vulneráveis diante dos homens.
Nua como vim ao mundo, atravessei o convento. O único calor que sentia era o provocado pelas lágrimas que deslizavam no rosto. Os pés andavam, um atrás do outro, a tactear um chão que podia desaparecer a qualquer momento. Não vi ninguém, não sabia onde estavam as outras monjas, nem a minha irmã, não tinha pai ou qualquer outra raiz, não tinha nada. Estava sozinha. O claustro era quadrangular, com uma fonte ao meio, ladeada de arbustos. Era verde e respirava ar puro. As arcadas, a contornar, erguiam-se cheias de segredos de pedra. Não sei como consegui chegar mas debaixo de uma abóbada dei com as roupas na borda da fonte. Corri para alcança-as. Piquei o calcanhar num qualquer espinho e, por instinto, levei a mão ao pé. Não devo ter demorado muito tempo, tal era a ânsia, mas quando me soergui, não estava à espera do que ia encontrar. Senhorita!
Fechei os olhos, na esperança de ter ouvido aquela voz apenas na minha cabeça. Senhorita! Dois homens caminhavam na minha direcção. Um deles, mais velho, que se anunciou como o abade de Alcobaça, e um mais novo, bonito, tão belo, tão belo, de quadro costados, por nascimento e educação, o conde de Vimioso. Aqui está a minha capa, senhorita. Permita-me que... Senti o conforto do tecido caloroso nos ombros, os dedos do conde levantaram-me e sorriram. Nenhuma crítica, nenhum julgamento. Eu estou absolutamente indignado com este comportamento, vou falar com a abadessa, não é possível uma monja... Noviça. Noviça, monja... Não pode andar... Abade, estou certo de que a noviça não teve qualquer intenção de ferir susceptibilidades. Certamente houve um equívoco e... Roubaram-me a roupa. Quem? Uma boa vingança não se faz de queixinhas. Não sei. O conde percebeu o que queria dizer a minha resposta. E o vosso nome é? Paula. Noviça Paula, levarei em conte as palavras do sensato conde e farei por esquecer o incidente. Mas esta é a casa de Deus, não uma qualquer estalagem de má fama. Mentia. O convento de Odivelas podia ser a casa de Deus, mas era, por vezes (não tantas quanto alguns puristas gostavam de maldizer, mas mais do que alguns pecadores tinham coragem de confessar), um prostíbulo onde o demónio se divertia sem vergonha.
A Luz apareceu pouco depois. Eu já estava vestida e recolhida na minha jaula. Onde fica o aposento de Madalena Máxima? O sangue sempre se fez reconhecer ao sangue. E se havia medo, havia também um entendimento para além de palavras. Bastou um apontar de dedo. Esperei pela oportunidade nessa noite. Não a tive. Nas noites seguintes, com a paciência de uma santa, continuei a aguardar. Fiz ouvidos de mercador aos cochichos das outras monjas que muito se riram do meu embaraço nu. Comi, orei, reduzida a um silêncio paciente». In Patrícia Muller, Madre Paula, Edições ASA II, 2014, ISBN 978-989-232-783-9.

Cortesia de ASA/JDACT