«(…) Alimentaram-na e protegeram-na (do frio, do calor, das
correrias, do mundo) como se ela não fosse mais do que uma boneca de porcelana ou um monstruoso
bibelot. Mariana foi demasiado mimada para poder suportar o mundo. Sofreu a
infância com a terrível maturidade de um adolescente e decifrou a adolescência
com a impiedosa infantilidade de um adulto. O pai amou-a com o amor absoluto,
sufocante, que era a memória do seu próprio desamor. Encontrou-se assim
precocemente confrontada com o desajuste dos espelhos e com a sôfrega cegueira
dos olhares. Mariana soubera escolher o seu destino, despojara-se do grosso véu
de invisibilidade, era agora um deles. Estavam todos no patamar do 45-A quando
se ouviu aquele baque seco. Foi ao princípio de uma tarde de domingo. O frio
era tanto que não havia maneira de arranjar uma casa livre. As famílias estavam
coladas aos aquecedores e à televisão. Para piorar a situação, a diva do chefe
tinha voltado a levar com o cinto do pai, e estava incapaz de subir para a
mota. Ninguém ousaria propor uma volta sem Cláudia e despertar a fúria de
Ricardo Luz. As iras do chefe eram raras e definitivas. Ganhara o lugar de
comando com um pontapé e dois murros: a Cravo e Canela estrebuchava debaixo do
bruto corpo do Traficâncias, que tentava violá-la ali mesmo, em cima da mota, à
entrada da garagem do 41. Eles estavam no costumeiro poiso do 45-A, e
espreitavam, muito calados, encolhidos contra a porta. A rapariga desatou a
gritar, o Traficâncias tapou-lhe a boca, e Ricardo irritou-se: embora. Vamos
mostrar-lhe quem é que é homem, pessoal.
Deixa estar, que a miúda já vai descobrir o que é um homem,
bichanou o Radar, num tremor de excitação. E se ela não ficar satisfeita, a
malta vai lá depois dar-lhe o resto, acrescentou o João, com um sorriso meigo,
acendendo um cigarro. Cambada de cães cobardes, é o que vocês são. Então vem
mafioso de fora abusar das miúdas da nossa quinta, e vocês ficam a rir-se,
borrados de medo, é, seus tarados? Oh Luz, tangareasy, pá! O Traficâncias não é
para brincadeiras, sabes bem, recordava o Linhos, em voz de falsete. Tu nem
conheces a miúda. Vamos que ela seja amiga do homem, hem?, aventava o Filipe, a
dar lustro ao capacete da mota. Bem. Já vi que convosco não me governo. Até já,
galinholas. Vou ali e já venho.
Nessa noite os rapazes descobriram duas coisas: que a Cravo
e Canela afinal se chamava Cláudia, e que Ricardo Luz passava a ser o chefe do
grupo. Aperceberam-se desta mudança de vida no breve minuto que mediou entre a
saída de cena do Traficâncias, praguejando agarrado à braguilha, e a entrada
fulgurante de Ricardo, com a beleza do bairro ao colo, desfeita em lágrimas. Pronto,
boneca, já passou. O Lobo Mau não volta mais. E se voltar, estamos cá nós para
lhe limpar o sebo, beldade, avisou o
Radar, adejando em redor do casal. Xô! Vê se ganhas vergonha na cara,
maricôncio, rosnou Ricardo, enquanto secava as lágrimas à sua protegida. Muito
prazer em conhecê-la, apesar das circunstâncias infelizes. Filipe, para as
amigas Marlon Brando. Como é que a menina se chama? Chama-se Cláudia, e não
está para aturar os vossos desmandos imbecis. Não percebem que a rapariga não
está bem, seus broncos? Calma, ó chefe! A gente só quer animar a pequena, com
sua licença, explicou o João, lançando um dos seus sorrisos de encantador
desprotegido. Obrigada pelos cuidados, chefe, disse Cláudia, com uma
gargalhadinha nervosa. A partir daquele instante, a liderança de Ricardo Luz
tornou-se inquestionável. Não era o mais forte: os músculos mais evidentes
pertenciam a Filipe do Carmo, autoproclamado Brando das Avenidas, às vezes
chamavam-lhe o Apertos, por causa da roupa, que escolhia sempre um número
abaixo, para uma melhor exposição das saliências. O maior desgosto de Filipe
era andar a pé; quando o vinha visitar, o pai prometia-lhe uma mota, mas acabava
sempre por trocar de carro e ficar sem dinheiro». In Inês Pedrosa, A Instrução dos
Amantes, Publicações dom Quixote, 1997, ISBN 978-972-200-972-0.
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