Constança
Paço
de Coimbra, Reino de Portugal, 1330
«(…) Pela minha palavra, senhor.
Jamais lhe faltei ao respeito. Não é o que se diz. Credes demasiado nos vossos
conselheiros, respondeu, altivo. Agem a bem do reino, com responsabilidade, ao
contrário de ti, que apenas cuidas de folganças, enfureceu-se o pai. Não é
certo, senhor! Ouvi-me. Branca não serve para futura rainha. As suas aias
asseguram que nem é ainda mulher. Afonso calou-se por instantes, desacreditado
das garantias do filho. O coração duro do rei tomara-se de afeição pela infanta
castelhana, que criara como uma filha junto a Beatriz. Insistiu: e como
chegaste à fala com as aias da infanta sobre assuntos deste melindre e que
devem ser tratados em completo recato? Pedro voltou a abanar a cabeça. Nada do
que dissesse seria tido em conta pelo pai, de ideias fixas. É tema corrente no
paço, senhor. Só vós pareceis mouco para o que todos afirmam. Afonso respirou
fundo várias vezes para amansar a ira e lançou a Pedro novo argumento: não é só
o reino que virá a sofrer com o repúdio. Temo também por tua irmã, rainha de
Castela.
Porque a haveis atirado para a
alcova de um homem que não lhe quer, cego no cumprimento dos tratados, atreveu-se
o infante. O peito de Afonso deu de si. Ouvir o irresponsável a discorrer com tom
de mestre sobre o assunto que mais pesava a el-rei não era um bom rumo para
levar a conversa, que se desejava construtiva. O remorso pesava nas almas. O
monarca sofria desse mal corrosivo havia anos. Sem se deixar levar pelos
nervos, que o impeliam a sovar o filho, respondeu, elevando a voz: o juramento
de um soberano a outro é o maior bem de um reino. É pelo cumprimento dos tratados
que o pão chega à mesa do povo. O infante fixou o olhar resoluto no pai. Mordeu
o lábio inferior, enquanto a perna direita lhe tremia nervosamente. Finalmente,
respondeu, com a segurança habitual: pois este não será cumprido. Tomarei por
esposa uma princesa sã, de corpo e de espírito. Branca sofre de enfermidade. Mandai
observá-la. Os físicos provarão o que afirmo.
O rei dispensou-o. Desgraçadamente,
reconhecia naquele filho voluntarioso a mesma rebeldia que ele próprio revelara
contra o seu pai, o rei Dinis, contra quem chegara a levantar parte da nobreza
numa guerra, por causa da preferência que o rei revelava com alguns dos seus
bastardos, no entender do filho legítimo. Mas o peso da coroa arrefecera-lhe os
ímpetos e, de infante assanhado, Afonso IV assumira o trono como monarca
respeitador das instituições e muito fulgor legislativo. Ordenou ao moço de
câmara que atiçasse a lareira, esmorecida. Ergueu-se e, de braços atrás das
costas, andou em círculos, aquecendo os membros e soltando as ideias. Não
permitiria que o dó lhe amolecesse a obrigação de monarca. Protegeria Branca,
mantendo-a em Portugal enquanto pudesse, mas teria de ultrapassar o melindre do
repúdio com o apoio dos seus homens de leis, muito capazes.
Reuniria os conselheiros. Uma
frase do filho ficara-lhe na mente. A de chamar físicos que pudessem atestar
pela falta de saúde da infanta. Se comprovassem o que Pedro repetia, Castela
não poderia ripostar pela força. Solicitaria a vinda de físicos castelhanos, enviados
pelo rei. Depois de muito matutar, chamou à sua presença Lopo Fernandes Pacheco,
o homem que lhe desembrulharia qualquer impedimento. Mandar pedir físicos à
corte de Castela. Que venham examinar a infanta Branca. É a única solução
viável para contornar este problema. Acredito que o exame nos será favorável,
senhor. Afonso acenou. Naturalmente, já se havia questionado sobre o fraco desenvolvimento
da criança que arranjara para casar com o filho. Mas como nem todas as bocas
ousavam dizer a verdade a el-rei, amiúde ouvia que o mal haveria de passar com
a chegada da regra, que tornaria Branca mulher. Era apenas um mal dos primeiros
anos. A infanta medraria, quantas vezes ouvira Afonso IV aquela expressão nos
cortesãos...
Mais sereno, o rei esticou a
perna direita, que lhe vinha causando incómodos. Os anos de guerra começavam a
dar de si na excelente constituição do monarca. Gozava de boa saúde mas os
ossos já se iam queixando. A frieza cortante de Coimbra nos meses de Inverno já
não deixava de lhe pesar. Cada vez mais o Paço de Lisboa, na alcáçova do velho
castelo, atraía Afonso IV para lá se fixar com mais demora. Era o paço e o
clima, mas era também a sua crença na centralização do poder que o levava cada
vez mais para a capital do reino. Teria de se agir em várias frentes para
desfazer aquele compromisso. Convencer o papado de Avinhão era outra tarefa
pesada». In Isabel Machado, Constança, A Princesa Traída por Pedro e Inês, A
Esfera dos Livros, 2015, ISBN 978-989-626-718-6.
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