A
profecia da Normanda. 1130-1131
«(…)
Jamais vos perdoarei! Ide-vos embora, não vos quero em Guimarães! Ide para Tui,
parir junto a quem vos emprenhou! Em passada larga, avançou para a porta do quarto,
mas Chamoa, que era uma rapariga orgulhosa e lutadora, embora muitas vezes também
uma infantil tola, indignou-se, levantando-se da cama aos gritos: quem sois vós
para me tratardes assim, como se fosse um monstro? Não vos lembrais do que
haveis feito a meu marido? Ao escutar a acusação que ela lançava, que sabíamos verdadeira,
o príncipe parou, de costas voltadas para Chamoa. Maria e eu mantínhamo-nos em silêncio,
sem saber o que dizer. Sentindo que talvez o tivesse amansado, a minha cunhada insistiu:
perdoai-me, Afonso. Como vos perdoei terdes morto meu marido, Paio Soares. Por
isso, vim ter convosco. Se quiserdes, desfaço-me desta criança que cresce no meu
ventre! Faço-o por vós, meu amado!
Um arrepio gelado percorreu-me a espinha.
Havia quem anulasse os filhos ainda por nascer, mas a ideia horrorizava-me e o
meu melhor amigo também não a aprovou, pois declarou, sem sequer encarar
Chamoa. Jamais aceitaria o sacrifício de uma criança para ter o vosso amor, mulher
desmiolada. Ide-vos embora e depressa! Nessa tarde, uma chorosa Chamoa abandonou
Guimarães na companhia de sua irmã e eu fui com elas levá-la a Tui, onde viviam
os pais de ambas e os três pequenos filhos da minha cunhada. Aquele vibrante e intenso
amor durara apenas uma curta semana e agora o relacionamento entre o príncipe e
Chamoa regressava ao estado de trepidação e desequilíbrio que sempre o caracterizara.
Desiludido e magoado, o meu grande amigo Afonso Henriques recomeçou a dizer que
desprezava as mulheres, o que levou a mulher de meu pai, Teresa Celanova, a resmungar
certo dia: por causa de uma, pagamos todas!
Guimarães. Dezembro de 1130
Quando eu e Maria regressámos de Tui,
onde havíamos deixado Chamoa, o príncipe de Portugal permanecia macambúzio. Fechava-se
longas horas no quarto sem falar com ninguém e dava lentos e solitários passeios
de roda da alcáçova, olhando o horizonte com desalento, como se a sua salvação
estivesse numa qualquer nuvem, que, porém, se afastava no céu, levada pelo vento
da injustiça. Teresa Celanova bem o tentava animar com os seus repastos. Mandava
vir marisco do Porto ou pescado de Vila do Conde, assava carnes sumptuosas, caçadas
nas serranias do Marão, mas nada minorava as dores amargas de Afonso Henriques,
nem sequer a presença do folgazão Gonçalo Sousa, nosso habitual companheiro de patuscadas.
Quando o entristecido príncipe se
dignava a falar, o alvo dos seus desanimados queixumes eram as mulheres. Naquela
tarde, enquanto trinchávamos um saboroso javali à roda da mesa, saiu-se com esta:
também minha mãe me desprezou. Mesmo no dia da sua morte, recusou dar-me a mão!
Passada essa funda revolta com a maternidade desleixada de dona Teresa, virou-se
contra Deus, que supostamente lhe amaldiçoava os enamoramentos. A somar às peripécias
com Chamoa, a minha prima Raimunda, que fora o seu primeiro amor, atirara-se de
uma ponte, mas ele nunca se considerara culpado do desgosto da rapariga. Para o
meu melhor amigo, mulher que o amasse uma vez tinha de o fazer a vida toda,
mesmo que não fosse amada de volta.
E agora
a desmiolada da Chamoa faz-me isto! Emprenha do primo quando finalmente se podia
entregar a mim? A sua voz enrouqueceu e a raiva foi mitigada por uma névoa de desilusão,
que tentou afastar com mais uma proclamação excessiva. Não tenho sorte com as mulheres!
Eu não o contestei, pois sabia que os seus desabafos magoados eram o fruto incómodo
de uma aguda dor de cor…, que aos vinte e um anos se sobrepunha naturalmente à fina
lucidez, mas Teresa Celanova rebateu estes desanimados argumentos, apresentando
uma razão religiosa. Tendes de saber perdoar, príncipe, assim nos ensina Deus. O
seu pedido caiu em saco roto, pois o meu amigo recusou cumprir as leis terrenas
da Providência e persistiu na sua teimosia acintosa. Jamais ficarei com mulher usada
por outro!, declarou, acrescentando um novo lamento. As mulheres só me causam sofrimento.
Cansado com a permanente repetição desta ladainha, o meu tio Ermígio Moniz tomou
coragem para lhe recordar que, antes dele, muitos homens tinham passado por idênticos
sofrimentos. Olhai o meu caso, todas as mulheres que amei me morreram, recordou
em voz solene». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa
das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.
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