Soure. Julho de 1132
«(…) Colocara o seu cavalo a passo,
ao lado do comandante do grupo. Magro, seco de carnes, com um cabelo ralo que ainda
realçava mais as mil e uma rugas que lhe cobriam e cara e a garganta, o mais
idoso dos templários possuía uma serenidade no olhar que acalmava. Zhakaria?, interrogou-se
Ramiro. O Velho lutara nas tropas de El Cid, em Valência, o seu conhecimento dos
hábitos guerreiros dos mouros era vasto e recordou que Abu Zhakaria era um
exímio mestre com o alfange. Aquela cabeça saltara de uma só vez, com urn golpe
implacável do cordovês. Só ele e os assassins cortam assim cabeças, sentenciou
o Velho. Rarniro ignorou este último comentário e afirmou: intriga-me a presença
de um galego por aqui. O Velho insistiu: os sarracenos preparam-se para novo ataque
a Coimbra. Ramiro limitou-se a continuar o seu raciocínio anterior: o Trava
quer a relíquia, quer dá-la a Afonso VII, não vai deixar que o príncipe a encontre.
Terá enviado gente para isso? O Velho encolheu os ombros, parecia cansado e murmurou:
os homens endoidecem com tesouros religiosos.
Aquele pensamento pessimista
embalou-os nas horas seguintes e só se agitaram quando, ao atravessarem uma aldeia,
um moçárabe os informou de que dias antes um grupo de galegos passara por ali, em
direcção ao rio Nabão, mas só o cavaleiro sem cabeça regressara. Porém, quando lhe
perguntaram se vira Abu Zhakaria, o lavrador respondeu que ninguém notara a presença
do cordovês. Apesar desta informação tranquilizadora, os templários de Soure redobraram
a vigilância enquanto se desviavam para leste, na direcção do Nabão, procurando
vestígios do solitário degolado. E encontraram-nos... A poucas léguas do rio, o
Peida Gorda distinguiu na estrada um despojo humano. Quando chegaram perto, o
Velho desmontou e, rodando a cabeça do infeliz galego, confirmou que fora decepada
por um afiado alfange. Zhakaria esteve aqui, declarou, perentório. Ramiro mandou-os
recolher a macabra descoberta, para lhe darem um enterro digno junto ao resto do
cadáver, e depois ordenou que avançassem até ao rio Nabão.
Cuidado,
avisou o Velho. Ainda nos cercam. O outro ignorou aqueles temores com uma pequena
provocação. Com a vossa idade ainda tendes medo da morte? Olhando em volta, o Velho
relembrou os colegas de expedição: foi a cautela que me manteve vivo. Ramiro, que
reagia sempre mal a quem o enfrentava, ripostou: questionais o meu comando? O idoso
templário limitou-se a sorrir, multiplicando as muitas rugas que normalmente já
exibia no rosto. Para isso é que já estou velho. Os restantes cavaleiros ignoraram
aquela suave celeuma, pois todos gostavam do Velho e o respeitavam. O Rato chamava-lhe
curandeiro e Ramiro ouvia-o sempre sobre questões relacionadas com armas, alimentação
ou doenças. Era um combatente antigo e bem-sucedido, podia dizer o que queria. Já
perto do rio, o Peida Gorda avançou primeiro, com a sua habitual coragem. Grande
e obeso, o seu rabo era tão volumoso que transbordava pela traseira da sela, gerando
risos nos outros. Mas tinha o espírito forte, nunca sentia medo de nada e por isso
todos ficaram petrificados quando regressou muito pálido e disse: Deus lhes perdoe,
é terrível. Lentamente, aproximaram-se. Estavam a pouca distância das ruínas de
uma pequena povoação e já podiam ver o Nabão, mas à direita deles, numa clareira,
um aterrorizador espectáculo aguardava-os. Espetadas no chão estavam nove lanças
sarracenas, onde nove cadáveres masculinos se encontravam empalados. E, pousadas
junto aos pés dos pobres desgraçados, viam-se nove cabeças». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das
Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.
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