O
Mundo que eles Criaram. Uma Constelação Única
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Igualmente espantosos eram alguns dos engenhos militares que Leonardo continuava
a esboçar nos seus cadernos de apontamentos: tais como um grande morteiro móvel
que dispara pedras como se fosse uma saraivada e um veículo blindado semelhante
a um tanque com a forma de um cone achatado, acompanhado por um desenho da sua
parte inferior demonstrando como funcionava a sua roda dentada. Estes desenhos estavam
bastante à frente do seu tempo: só três séculos mais tarde é que um veículo
militar blindado com semelhanças assinaláveis seria experimentado na Guerra Civil
Americana. É pouco provável que estes desenhos tenham passado efectivamente à
prática, mas experiências recentes demonstraram que a maioria deles
funcionaria. Uma excepção assinalável era o carro blindado, cujo motor de rodas
dentadas fora concebido de tal maneira que impulsionaria as rodas da frente e
as de trás em sentidos opostos. É um erro tão elementar que pode muito bem ter
sido cometido de propósito, para que qualquer ladrão inexperiente que tentasse
construir sozinho um destes veículos não o conseguisse fazer. Por outro lado, este
erro pode muito bem ter ficado a dever-se às desconfianças iniciais de Leonardo
acerca deste tipo de trabalho. Apesar da sua crescente mestria na concepção de
armas de guerra, ao longo de toda a sua vida manteve-se sigilosamente (isto é,
nos seus cadernos de apontamentos) contrário à crueldade dos homens (...) que
estarão sempre a lutar uns com os outros, infligindo as maiores perdas e morte
frequente a ambos os lados.
Numa
linha semelhante, Leonardo desenhou diques para controlar os canais que irrigavam
as planícies férteis dos arredores de Milão, mas concebeu também um método para
deixar uma inundação de água solta sobre um exército e pontes e muralhas de
cidades. Estes planos podem muito bem ter sido inspirados pela inundação do
Arno que testemunhou na juventude. Ao mesmo tempo, talvez para conter qualquer
futura inundação do Arno, esboçou um mapa com um plano destinado a desviar o
rio das proximidades de Florença para um canal que levaria directamente à
costa, dando à cidade uma via navegável para o mar. Dadas todas estas
preocupações, não é de surpreender que Leonardo tivesse pouco tempo para a
pintura. De facto, durante os 17 anos que viveu em Milão, apenas completou seis
obras, embora entre elas se contassem algumas das melhores que saíram do seu
pincel, a mais notável seria A Última Ceia. Este mural, pintado no
refeitório do mosteiro dominicano de Santa Maria delle Grazie, em Milão, revela
Leonardo no seu melhor.
As
suas aptidões de pintor sempre inovadoras atingiram o seu auge e, na sua busca
incansável da originalidade, escolheu uma abordagem inteiramente nova para a
pintura de frescos. Uma descrição em primeira mão feita pelo jovem Matteo
Bandello, à altura noviço no mosteiro, mostra o sofrimento imenso por que
Leonardo passou para concluir esta obra: chegava bem cedo, subia para o andaime
e começava a trabalhar. Por vezes, ficava ali desde o nascer do dia até ao pôr
do Sol, sem pousar uma única vez o pincel, esquecendo-se de comer e beber,
pintando sem cessar. Noutras ocasiões, passava dois, três ou quatro dias sem
pegar no pincel, mas ficando uma ou duas horas por dia de pé frente à obra, de
braços cruzados, analisando e avaliando as figuras mentalmente. Também o vi,
levado por algum ímpeto súbito, sair da Corte Vecchia ao meio-dia, quando o
calor do Sol estava no seu máximo, sem procurar as sombras (...) e vir direito
a Santa Maria delle Grazie, subir para o andaime, pegar no pincel, dar uma ou
duas pinceladas, e ir-se embora de novo.
Cada
rosto, cada feição, cada posição e gesto dos 12 apóstolos sentados à mesa com
Cristo foram o resultado de uma profunda meditação artística. Cada figura é
individual, inspirada em alguém que lhe chamara a atenção e que, de forma
disfarçada, esboçara no caderno de apontamentos que trazia pendurado no cinto.
Ainda assim, cada figura é reconhecível tanto psicológica como simbolicamente,
desde o céptico Tomás com o seu dedo predestinado erguido, até ao afetacdo
intelectual Lucas, todos fechados dentro das rígidas formas geométricas do
cenáculo, cuja perspectiva conduz permanentemente os olhos para a figura
central de Cristo, e depois permite que eles percorrem cada fila de discípulos
que gesticulam, criando uma cena teatral repleta de presciência». In
Paul Strathern, O Artista, o Filósofo e o Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e
Bórgia e o Mundo que eles Criaram, Clube do Autor, Lisboa, 2009, ISBN
978-989-724-010-2.
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