sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Rosa Brava. José Manuel Saraiva. «Leonor temia que algum nobre da casa, parente próximo ou afastado do conde, as descobrisse, tão perto uma da outra, numa atitude de estranha cumplicidade, e fosse contar isso a João Afonso Telo»

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«(…) Para João Afonso Telo, a palavra era, acima de tudo, um voto terminante, uma espécie de lei irrevogável, a insuspeita garantia de que nenhuma forma de arrependimento poderia alterar o que quer que fosse. O que se dissesse e se prometesse estava dito e prometido. Significava isto que, uma vez dada a sua palavra, nada faria o conde voltar atrás. E Leonor Teles sabia-o melhor que ninguém. Mesmo assim, numa tarde de muito frio, depois de ter passado mais de duas horas a rezar para que a falecida mãe intercedesse no Céu por ela e a ajudasse a descobrir na terra o caminho da redenção e da procura, encontrou-se às escondidas, na câmara inferior do solar, com Briolanja Mendes, que fora na sua infância uma dedicada ama e era agora, na idade adulta, a única confidente e excepcional conselheira. Queria saber o que a velha criada pensava do assunto, da conveniência ou da inconveniência de uma conversa com o senhor conde acerca da proposta de renúncia ao fidalgo prometido.
Logo que as duas mulheres entraram na sala, Leonor Teles, antes mesmo de se sentar num dos dois únicos bancos de pinho que compunham o parco mobiliário daquele desconfortável compartimento, apoiou as mãos sobre os ombros da ama e, num tom de voz estremecido, perguntou: que hei-de fazer eu à vida, Briolanja Mendes? Tu, minha devotada amiga, tu que acreditas nos sortilégios e sabes que os presságios se cumprem sempre, diz-me o que deverei fazer? Sabes que arrenego o homem com quem vou casar e, Deus me perdoe a blasfémia, também deves saber que por arrenegá-lo tanto jamais saberia amar o filho que porventura dele viesse a ter... Senhora... Não, Briolanja, ouve primeiro e fala depois. Com a mão direita e a ajuda da perna esquerda, Leonor Teles arrastou um banco pelo chão e colocou-o a pequena distância do outro, daquele que haveria de ocupar.
Agora senta-te aqui e escuta, ordenou, triste, emocionada, com os olhos vermelhos de muito choro. Dizia-te eu que abomino João Lourenço não tanto por me ter sido imposto pelo senhor conde, meu tio, nem sequer pela sua desagradável feição e o grosseiro porte, mas principalmente por ver nesse reles fidalgo a incapacidade de recensear dois ou três actos de valentia que tanto nos seduzem, a nós, mulheres. Disseram-me aqui mesmo, nesta câmara, alguém sentado no lugar onde estás, e que bem o conhece, que João Lourenço é um homem habituado unicamente ao consolo das amantes e ao regalo de outras mulheres de estimação duvidosa. Assim sendo, como posso eu partilhar a cama com um demónio desses? Diz-me, Briolanja! Como posso eu partilhar o meu corpo com um fidalgo rico de bens, é certo, mas pobre de sentimentos? Ou me engano muito ou ele espera de mim, apenas e tão-só, uma esposa dócil, a esposa fértil que lhe multiplique a família, lhe perpetue o nome e a descendência.
Senhora, o que quer dizer de seu ao senhor conde?, perguntou Briolanja Mendes, depois de a jovem interromper o discurso para limpar os olhos à manga do balandrau, colocado cuidadosamente sobre os ombros. Leonor Teles fitou séria o rosto de Briolanja, com as mãos ajeitou a crespina que lhe cobria as longas tranças e, sem pestanejar ou mudar de expressão, respondeu num tom de voz quase inaudível: dizer-lhe que não quero casar com João Lourenço. E, após uma prolongada pausa, concluiu: simplesmente isso. Do exterior da casa, na zona da cozinha e dos currais, chegou naquele instante o ruído simultâneo de vozes e do batimento no lajedo dos cascos de um cavalo. Briolanja levantou-se imediatamente e, espreitando pela fresta da janela por onde entrava um feixe de luz pálida como a cor do dia, verificou que não era ninguém com direito de acesso ao interior do solar. Não há nenhum problema de sermos vistas, senhora, é o almocreve que acaba de chegar com mercadoria para o celeiro; está ali à conversa com dois criados.
Leonor temia que algum nobre da casa, parente próximo ou afastado do conde, as descobrisse, tão perto uma da outra, numa atitude de estranha cumplicidade, e fosse contar isso a João Afonso Telo. E este, todos o sabiam, não apreciava que a sobrinha mantivesse contactos demasiado íntimos com as aias ou camareiras residentes na sua casa. Gostava de separar as águas. Mais tranquila, não só pela ausência de qualquer empecilho que lhe estragasse a conversa, mas sobretudo pelos desabafos que lhe iam libertando a alma de tanto lixo, Leonor Teles prosseguiu: sabes, Briolanja, quero casar, sim, mas com um homem que eu ame e me queira amar. Já conheci alguns na minha vida; poucos, é verdade, e tu melhor que ninguém o sabes. Mas por motivos vários, que agora não vêm ao caso, não consegui alcançá-los. Ou melhor, o senhor conde, meu estimado tio, não me deixou alcançá-los. E após um instante de silêncio, acompanhado por um vigoroso soluço, prosseguiu: que hei-de fazer eu à vida? Diz-me, minha boa amiga, que destino vai ser o meu?» In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.

Cortesia de OdoLivro/JDACT