quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Singularidades de uma Rapariga Loura. Eça de Queirós. «… e as manas Hilárias, a mais velha das quais, tendo assistido, como aia de uma senhora da Casa da Mina, à tourada de Salvaterra, em que morreu o conde dos Arcos…»

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«(…) E Macário, contando a história do seu coração acordado e exigente e falando do amor com as exaltações de então, pediu-lhe como a glória da sua vida que achasse um meio de o encaixar lá. Não era difícil. As Vilaças costumavam ir aos sábados a casa de um tabelião muito rico na Rua dos Calafates: eram assembleias simples e pacatas, onde se cantavam motetes ao cravo, se glosavam motes e havia jogos de prendas do tempo da senhora dona Maria I, e às nove horas a criada servia a orchata. Bem. Logo no primeiro sábado Macário, de casaca azul, calças de ganga com presilhas de trama de metal, gravata de cetim roxo, curvava-se diante da esposa do tabelião, sr.ª Maria da Graça, pessoa seca e aguçada, com um vestido bordado a matiz, um nariz adunco uma enorme luneta de tartaruga, a pluma de marabout nos seus cabelos grisalhos. A um canto da sala já lá estava, entre um frufru de vestidos enormes, a menina Vilaça, a loura, vestida de branco, simples, fresca, com o seu ar de gravura colorida. A mãe Vilaça, a soberba mulher pálida, cochichava com um desembargador de figura apopléctica. O tabelião era homem letrado, latinista, e amigo da musas; escrevia num jornal de então, a Alcofa das Damas: porque era sobretudo galante, e ele mesmo se intitulava, numa ode pitoresca, moço escudeiro de Vénus. Assim, as suas reuniões eram ocupadas pelas belas-artes, e, numa noite, um poeta do tempo devia vir ler um poemeto intitulado Elmira ou a Vingança do Venesiano!... Começavam então a aparecer as primeiras audácias românticas... As revoluções da Grécia principiavam a atrair os espíritos romanescos e saídos da mitologia para os países maravilhosos do oriente. Por toda a parte se falava no paxá de Janina. E a poesia apossava-se vorazmente deste mundo novo e virginal de minaretes, serralhos, sultanas cor de âmbar, piratas do Arquipélago, e salas rendilhadas, cheias do perfume do aloés onde paxás decrépitos acariciam leões. De sorte que a curiosidade era grande, e quando o poeta apareceu com os cabelos compridos, o nariz adunco e fatal, o pescoço entalado na alta gola do seu fraque à Restauração e um canudo de lata na mão, o Macário é que não teve sensação alguma, porque lá estava todo absorvido, falando com a menina Vilaça. E dizia-lhe meigamente: então, noutro dia, gostou das casimiras? Muito, disse ela baixo.
E, desde esse momento, envolveu-os um destino nupcial. No entanto, na larga sala, a noite passava-se espiritualmente. Macário não pôde dar todos os pormenores históricos e característicos daquela assembleia. Lembrava-se apenas que um corregedor de Leiria recitava o Madrigal a Lídia: lia-o de pé, com uma luneta redonda aplicada sobre o papel, a perna direita lançada para diante, a mão na abertura do colete branco de gola alta, e em redor, formando círculo, as damas, com vestidos de ramagens, cobertas de plumas, as mangas estreitas, terminadas num fofo de rendas, mitenes de retrós cheias da cintilação dos anéis, tinham sorrisos ternos, cochichos, doces murmurações, risinhos, e um brando palpitar de leques recamados de lantejoulas. Muito bonito, diziam, muito bonito! E o corregedor, desviando a luneta, cumprimentava sorrindo, e via-se-lhe um dente podre.
Depois, a preciosa sra Jerónima Piedade Sande, sentando-se com maneiras comovidas ao cravo, cantou a sua voz roufenha a antiga ária de Sully:

Oh Ricardo, oh meu rei,
o mundo te abandona.

O que obrigou o terrível Gaudêncio, democrata de 20 e admirador de Robespierre, a rosnar rancorosamente junto de Macário: reis-víboras!... Depois o cónego Saavedra cantou uma modinha de Pernambuco muito usada no tempo do senhor João VI: lindas moças, lindas moças. E a noite ia assim correndo, literária, pachorrenta erudita, requintada e toda cheia de musas. Oito dias depois, Macário era recebido em casa da Vilaça, num domingo. A mãe convidara-o dizendo-lhe: espero que o vizinho honre esta choupana. E até o desembargador apoplético, que estava ao lado, exclamou: choupana! Diga alcáçar! Formosa dama! Estavam, nesta noite, o amigo do chapéu de palha, um velho cavaleiro de Malta, trôpego, estúpido e surdo, um beneficiado da Sé, ilustre pela sua voz tiple, e as manas Hilárias, a mais velha das quais, tendo assistido, como aia de uma senhora da Casa da Mina, à tourada de Salvaterra, em que morreu o conde dos Arcos, nunca deixara de narrar os episódios pitorescos daquela tarde: a figura do conde dos Arcos de cara rapada e uma fita de cetim escarlate no rabicho; o soneto que um magro poeta, parasita da Casa de Vimioso, recitou quando o conde entrou, fazendo ladear o seu cavalo negro, arreado à espanhola, com um xairel onde as suas armas estavam lavradas em prata; o tombo que nesse momento um frade de S. Francisco deu na trincheira alta, e a hilariedade da corte, que até a senhora condessa de Povolide apertava as mãos nas ilhargas; depois el-rei, o senhor José I, vestido de veludo escarlate, recamado de ouro, todo encostado ao rebordo do seu palanque, fazendo girar entre os dedos a sua caixa de rapé cravejada, e atrás, imóveis, o físico Lourenço e o frade seu confessor; depois o rico aspecto da praça cheia de gente de Salvaterra, maiorais, mendigos dos arredores, frades, lacaios, e o grito que houve quando José I entrou: viva el-rei, nosso senhor! E o povo ajoelhou, e el-rei tinha-se sentado, comendo doces, que um criado trouxe num saco de veludo atrás dele». In Eça de Queirós, Singularidades de uma rapariga loura, 1873-1874, Contos, 1901, Sopa de Letras, 2013, ISBN 978-972-870-878-8.

Cortesia de SopadeLetras/JDACT