«(…) Manuel I queria gente de
invulgar categoria e em condições de transmitir em Roma a noção de que o rei
português não era apenas uma dócil ovelha da Igreja ou um simples servo dela
sem proveito; era sim um homem empenhado em levar a terras remotas a fé e a lei
de Cristo. Além disso, pretendia que os seus embaixadores mostrassem ao mundo
cristão e herético, numa atitude de assombrosa altivez, que o reino de Portugal
era tão rico ou mais ainda do que a corte pontifícia, e ele, monarca por escolha
e vontade de Deus, tinha um poder, se não igual, pelo menos próximo do chefe da
Cristandade. Tamanha vaidade, a que associava uma enorme admiração e um extraordinário
encanto por si mesmo, Manuel I nunca a escondia. As mensagens que lhe chegavam
de reis estrangeiros, enaltecendo o seu valor e o heroísmo dos marinheiros
portugueses, reenviava-as imediatamente a Leão X na secreta esperança de que
este se deixasse impressionar por elas. Isso aconteceu, por exemplo, quando a
rainha Helena, regente da Abissínia, em nome de seu neto David, de doze anos,
escreveu uma carta a louvá-lo e a oferecer-lhe suprimentos para o abastecimento
dos navios da coroa de Lisboa que fossem combater e exterminar os mouros na
costa de África.
A fama do rei e dos seus
marinheiros começava de tal forma a espalhar-se pela Europa que até o imperador
da Alemanha, Maximiliano I, numa carta que escrevera à filha Marguerite, a
viver na corte de Flandres, e cuja cópia fora igualmente remetida a Sua Santidade,
garantia, convencido de uma verdade jamais certificada, que os portugueses
tinham conquistado Meca e destruído a cidade. Face, pois, ao estrondo causado
por tantas e tão boas notícias sobre o sucesso dos seus navegadores, Manuel I achava
que Portugal devia aproveitar a onda de entusiasmo que varria o mundo católico
para exigir do ocupante da cátedra pontifícia a aprovação de três importantes medidas:
a criação de uma liga formada por todos os reis e príncipes da cristandade,
destinada a combater os turcos que, animados pelas vitórias de Solimão II na
Palestina e na Hungria, ameaçavam invadir os reinos meridionais; a continuação
do sagrado concílio de Latrão, tendo em vista a reforma da Igreja não tanto no
dogma invariável quanto nos seus aspectos disciplinares; e, finalmente, a
institucionalização temporária do pagamento de um imposto, pelo clero secular,
para recompensar os homens que iam servir em África e na Ásia.
Objectivamente, eram estas as
propostas do rei português que, associadas a outras questões de natureza
subjectiva, o jurisconsulto teria de defender, em Roma, na sua oração de obediência.
Tenterei pois escrever uma rogatória ao vosso gosto, meu senhor. Com um sorriso
de contentamento, Manuel I levantou-se da sédia, deu um novo abraço a Diogo
Pacheco e, sem nunca esconder a emoção, disse que outra coisa não esperava
dele. Há algo, porém, que gostaria de vos colocar, Alteza, ponderou o nobre, quando
os dois homens se libertaram do enleio. O que é? Gostaria que autorizásseis a
levar comigo uma jovem, a bela jovem de que já vos falei em tempos... Apanhado
de surpresa, o monarca franziu a testa, abriu os olhos de espanto e questionou:
desejais levar uma mulher na embaixada? E, sem dar tempo a que Diogo Pacheco
respondesse, prosseguiu: estais louco, Santo Deus!? Quereis uma mulher numa
embaixada política, constituída apenas por homens ilustres e distintos
fidalgos? Saberei protegê-la, Alteza». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus,
Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
Cortesia de OdoLivroE/JDACT