Varsóvia
«(…) Patryk Weisz ficou imóve1 e pôs-se
à escuta através do chão vazio. Nada se ouvia na enorme casa. O silêncio parecia-lhe
estranho. Mas nunca aqui vivera. Fora criado em Londres. Alguns anos antes, o
pai, depois de a mãe morrer, regressara ao seu país para aí residir. Mas Patryk
mal se sentia polaco. No ano passado visitara o pai em casa apenas por três vezes.
A propriedade era-lhe estranha e, sem o pai, a casa era para ele um edifício como
outro qualquer. Olhou para uma fotografia emoldurada na parede. Mostrava-o talvez
com 2 anos. Sentado com uma fralda grande demais à beira de uma caixa com areia,
tendo na mão uma pequena pá azul. Olhava com ar céptico para a máquina fotográfica.
Com a pequena mão esquerda, apontava para o fotógrafo. Talvez se tivesse interrogado
sobre quem seria o homem que o olhava de cima através da máquina. O pai, como a
mãe sempre lhe contara, não estava muitas vezes em casa. O seu lar era o gabinete
de trabalho e a sua verdadeira família os colegas. Era a obra da sua vida, como
o pai sempre salientara. Patryk suspirou. A reforma devia ter sido para ele um tormento
insuportável. E depois as dores que se seguiram ao acidente. Sobre as quais
nunca dissera uma palavra, mas que, no entanto, o acompanhariam para sempre, tal
como os médicos, mesmo até ao final da sua vida. Patryk suspirou, mais uma vez.
Ouviu um ruído. Talvez fosse um dos cães de caça. Ou um dos poucos empregados que
restavam e cuja tarefa principal era a de cuidar dos cães. E a de manter em bom
estado as 26 divisões, entre as quais cinco casas de banho e sete quartos de dormir.
Patryk abanou a cabeça e riu-se com desprezo. Vinte e seis divisões para um só homem.
Tantos locais onde ele podia estar sozinho. Não se dizia sempre que a riqueza gerava
a solidão! Patryk podia aqui percorrer o caminho de pedras que o demonstrava. O
vazio que ele sentia... Era-lhe agora claro que esse vazio, sentido pelo seu
próprio pai, existira sempre nesta casa, e não só agora. Até ao dia em que oito
semanas antes, Pavel Weisz desaparecera do mundo sem deixar rasto.
O olhar de Patryk desviou-se da fotografia
e deteve-se na parede do outro lado. De um quadro, por cima de uma pequena mesa,
gritava-lhe uma pessoa com as mãos coladas nos ouvidos, a boca aberta e os
olhos vazios. A pessoa até parecia estar a berrar. Patryk conhecia a pintura, da
autoria de um pintor norueguês. Admirou-se. Até esse momento, nunca dera pela
existência do quadro em casa. E seria o original? O pai, normalmente, não se satisfazia
com cópias. Lembrou-se, de imediato, da cave. A mão foi até ao bolso das
calças, de onde tirou um pequeno papel. Helen Morgan, era o papel onde aí fora escrito
com a caligrafia trémula do pai. Patryk olhou para os algarismos por baixo do nome
e depois para o relógio de pulso. Voltou-se e procurou lembrar-se de qual era o
caminho para o escritório. Havia aí um telefone.
Florença, por volta de 1500
Um homem jovem apareceu hoje em nossa
casa depois do almoço, elegantemente vestido. A gola estava debruada com pele de
lince. Os caracóis mostravam um esplendor idêntico. As maçãs do rosto pareciam pêssegos.
Os lábios eram rosados e cheios. O olhar, seguro de si, era o de um príncipe. Pensei,
depois de o ver, que fosse um dos meus alunos e quis repreendê-lo por não ter anunciado
a sua visita a minha casa.. Mas, nessa altura, por qualquer motivo incompreensível,
não o pude fazer. Não o pude fazer como não pode o homem transformar o dia em noite.
Nem fechar a porta à morte, caso ela decida atormentá-lo. Só a ti, meu diário,
o confio, sabendo plenamente que contigo tudo isto ficará para sempre guardado.
E também não o pude fazer porque durante toda a minha vida esperei por ele. Não
é um aluno, mas também não é um príncipe. Algo muito dentro de mim me diz que nem
sequer é deste mundo. Foi por isso que o deixei entrar.
Boston
Um vento suave de Outono
acariciou-lhe o rosto. Helen inspirou o ar e deixou que essa aragem lhe descesse
aos pulmões, sentindo que o nó do seu estômago cedia. À sua volta as árvores do
parque brilhavam com as cores mais vivas. De passagem viu um jovem casal, sentado
num dos bancos, a falar ternamente entre si. O indian summer revelava-se na sua
face mais bonita e envolvia a cidade no seu abraço romântico. Como cientista, Helen
sabia interpretar os fenómenos da natureza. Nas noites frias e nos dias ainda
quentes desta altura do ano, as árvores produziam uma substância química que
bloqueava a troca de humidade entre os ramos e as folhas. A consequência era uma
queda drástica na quantidade da clorofila enquanto o açúcar das folhas lhes dava
cores muito mais quentes. Era um processo químico, nada mais. Tal como o amor. Assim
que convencia o seu coração com uma explicação biológica e racional da
natureza, tudo se tornava, de repente, mais pesado. Por mais que desejasse ter a
imagem ideal de uma cientista, raramente conseguia sentir-se esclarecida e
guiada pela razão». In Tibor Rode, O Vírus Mona Lisa, 2016, Topseller, 20/20 Editora, 2016,
ISBN 978-989-883-989-3.
Cortesia de
Topseller/20/20E/JDACT