1805
- 1806
«(…) Estava rodeado de outros
investidores, como ele próprio, que falavam dos caminhos-de-ferro como o negócio
do futuro e das guerras ultramarinas com uma amargura crescente. Odiavam Napoleão,
mas concediam-lhe cada entrelinha das suas conversas. Na realidade,
invejavam-lhe era as vitórias. Daniel não era patriota de gema, sentia-se
tomado pelos ventos dos quatro cantos do mundo e só não levantava amarras
porque tinha os negócios pendentes e não confiava em ninguém para os gerir. Muito
menos no cretino do marido da irmã mais velha, que, mal deitasse as mãos aos
seus pertences, desviaria o que conseguisse. Pudera, com um rendimento anual de
setecentas libras, as seis mil de Daniel deixavam-no em alvoroço. Esperara um
dote generoso da parte do cunhado, mas o filho de Humphrey Turner não se
deixava intimidar por caras feias. Tão-pouco lhe importava ser o objecto de
bajulação de toda a família. A irmã Sarah era honesta e não atribuía aos fundos
do pai, com que Daniel primeiramente investira, a construção do seu pequeno
império. Sabia que nas mãos do senhor Turner nunca se teriam multiplicado
daquele modo. E havia Lizzie, que era a irmã mais nova e que o amava incondicionalmente.
Era um feito admirável ter
ascendido praticamente do nada para o patamar que atingira. E tinha apenas vinte
e quatro anos quando adquirira a adega em Portugal, tendo feito as bagagens e
rumado àquelas latitudes, nesse primeiro ano do novo século. Passara os
primeiros meses na capital, correspondendo-se com os portugueses que lhe tinham
entregado o espaço onde criaria a adega. Nesse ano de 1805 já era um
transportador e armazenador de vinhos de renome na área, trazendo-os Douro
abaixo e mantendo-os durante o tempo necessário na humidade granítica de Vila
Nova de Gaia. Ambicioso como era, não tencionava ficar-se por aí. Ia começar a
produzir, transportar e armazenar o seu próprio vinho do Porto. Ia monopolizar o
seu negócio para lhe garantir rentabilidade. Para isso unira-se a João Albuquerque,
barão de Arraiais, que conhecera no Café do Comércio, em Lisboa.
João era ali cliente habitual, e
Daniel Turner, pouco ambientado com o sol e a diversidade cultural de uma cidade
como Lisboa, não sabia ao certo aonde dirigir-se e por onde começar a averiguar.
Tendo desembarcado em Lisboa, não ia desperdiçar a oportunidade de conhecer a capital
de um outro império que não o britânico, plena de oportunidades de negócio como
era a cidade branca, à qual chegavam e partiam semanalmente embarcações de
tantos cantos do mundo civilizado. A diversidade cultural era arrebatadora; ia
de negros libertos vindos de África, que calcorreavam a cidade descalços, até
homens que faziam parte de núcleos de elite no Brasil e estavam de visita à
terra mãe com histórias de selvagens, feras e chuvas tropicais. Viam-se
alimentos invulgares em Portugal, frutos incomuns como a laranja surgiam nos
pomares de todos os quintais, comia-se caça, mas também muito peixe fresco, o milho
era frequente nos pratos tradicionais e encorpava o pão. Ele tivera mesmo a
sorte de frequentar os melhores círculos e ficou espantado com a proliferação
de ingleses por este território no Sudoeste da Europa continental.
Ficou encantado com as seges que
percorriam a distância entre a Praça do Comércio, onde se situava o café que
frequentava, e Belém.
À
porta do café juntavam-se as meninas afectadas, em idade casadoira, que
esperavam nas carruagens pelas criadas que lhes traziam os sorvetes. Mariana Albuquerque
era uma delas, em tudo diferente das crianças inglesas, de rostos angelicais e
olhos claros. os cabelos das crianças portuguesas eram escuros como os dos
ciganos que percorriam a Inglaterra nas suas tendas de nómadas, e a filha de
João, postada fora da liteira com uma criada, à espera que o pai regressasse
com o sorvete de cacau açucarado, não diferia das restantes. Quando a vira na companhia
do pai, achara-a sempre uma réplica de cigana inglesa, de pele tocada pelo sol que
reflectia no Tejo, olhos negros e cabelos cor de ébano. Era baixa, o peito liso
como uma planície sob o espartilho e nem as rendas delicadas do decote baixo
aliviavam essa impressão de saltimbanca. Das únicas duas vezes que fora
abordada por João na sua presença, limitara-se a encaminhar o sorvete para as
beiças de menina gulosa e a ignorá-lo. Tudo o resto, das gaivotas às vendedoras
que equilibravam tripas sobre a cabeça, lhe parecia mais digno da sua honrosa
atenção. O pai gabava-lhe o inglês, mas a fidalga de onze anos não lhe dedicara
um bom-dia que fosse. João desculpara-se em seu nome. Pai algum inglês se
desculpava em nome da filha mimada». In Célia Correia Loureiro, A Filha do Barão,
1809, Marcador Editora, 2013/2014, ISBN 978-989-754-039-4.
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