Leonor.
1755-1770
«Feliciana, Feliciana!… Mãe! Senhora
minha mãe! O grito estridente de Leonor rompeu o silêncio da noite, que logo
voltou a cair denso e medonho, invadindo o quarto como um monstro tenebroso.
Escondida debaixo dos pesados lençóis de linho, Leonor, apavorada, tornou a
chamar, desta vez ainda mais alto. Feliciana, Feliciana!… Mãe! Senhora minha
mãe! Foram instantes até que uns passos apressados fizessem ranger o soalho do
corredor. Leonor recostou-se nas almofadas, de olhos fixos na porta, agarrando
com força na boneca de madeira. A mãe vinha aí, conhecia-lhe o andar mas só
quando a viu recortada no escuro suspirou de alívio. Leonor estranhou que a ama
não tivesse ouvido a filha mais velha mas, como a pequena não parava de chamar,
teve de se levantar
e de sair dos seus aposentos em camisa. Entrou no quarto, afastou as cortinas
do leito, pousou a palmatória de prata com a vela acesa na mesa-de-cabeceira e
sentou-se na borda da cama. Trazia
o cabelo arrumado numa touca bordada e um sorriso doce, que a criança sentiu
pousar-lhe primeiro ao de leve na pele e depois no coração. Então, Leonorzita,
são cinco da manhã, o que te inquieta, minha filha?
O silêncio, respondeu Leonor,
erguendo-se de repente e agarrando-se à cintura da mãe, num abraço desamparado.
O silêncio, filha? Mas querias tu que houvesse ruído no palácio, a esta hora? Leonor
desprendeu-se dos braços da mãe, pulou descalça para o chão e correu a abrir as
janelas de par em par. A noite estava límpida, de uma imensa serenidade, e uma
brisa leve de nordeste entrou pelo quarto. O céu, minha mãe, as estrelas, de
que meu pai me ensina os nomes, fugiram todas! Passou por aqui uma só… e tinha
asas. Era uma estrela com asas e não deixou senão uma cauda, como se fosse o
manto de Sua Alteza! Que disparate, filha! Dona Leonor fechou as janelas. Anda,
anda deitar-te, Leonorzita, eu fico aqui contigo mas diz-me o que te assusta,
meu anjo! O céu, senhora minha mãe, passou aqui por cima uma estrela com asas, que eu vi…
Dona Leonor voltou a deitá-la, cobriu-a
com os lençóis, ajeitou-lhe as almofadas e sorriu com ternura. A imaginação da
filha era, de facto, delirante. Na véspera, dia em que completara cinco anos,
regressa de Colares extremamente inquieta: o chafariz da vila secara, e o que
apenas causara estranheza aos adultos bastou para lhe atiçar a curiosidade. Na
carruagem de regresso a Lisboa, não parou de perguntar por que razão não dera
água a fonte e, como ninguém lhe soubera responder, ficou a fantasiar mil
enredos. No fim da ceia, nem a caixinha de música que o avô Alorna lhe dera
pelos anos nem a paciência da Feliciana a tinham conseguido acalmar. Fora
difícil fazê-la adormecer. E agora aqueles gritos às cinco da madrugada,
primeiro, com medo do silêncio, depois, debruçada na janela a adivinhar no céu
o manto de uma estrela ausente. Era sem dúvida uma criança precoce, sabia de
cor a história sagrada e a história profana, as parábolas da Bíblia e os deuses
da mitologia pagã. Leonor parecia bem diferente da irmã, Maria, que no quarto
ao lado dormia o sono dos justos, e do pequeno Pedro, que acabara de fazer um
ano. Mãe! Pode ficar aqui, minha mãe? Tenho medo do silêncio. Calma,
Leonorzita, já passou! Chiu! Não se ouve o ladrar dos cães, pois não, minha
mãe? Para onde terão ido?
Por um instante ficaram as duas
caladas. Com efeito, pensou dona Leonor, o costume seria ouvir-se na noite o
ladrar dos muitos cães que vadiavam por Lisboa. Dizia-se que eram mais de
oitenta mil. Leonorzita tinha razão, não se ouvia um único latir, um único som
que fosse. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Tentando não dar importância ao
estranho silêncio de que a filha falava, dona Leonor endireitou-lhe os folhos e
os punhos de renda da camisa e passou-lhe a mão ao de leve pelos cabelos
encaracolados que lhe emolduravam o rosto perfeito, de olhos vivos, curiosos,
brilhantes. Dorme, Leonor, os cães também já dormem, como a Maria e o mano. Depois,
continuando a acariciar suavemente o cabelo da filha, pôs-se a entoar uma
cantiga de embalar, enquanto pedia a Deus que a sua Leonor se tornasse uma
mulher forte, corajosa e saudável, uma mulher da sua estirpe, com a alma e a
determinação Távora, a quarta Leonor Távora em linha directa. Assim que a
pequena adormeceu, encostou as madeiras da janela e saiu do quarto, pé ante pé,
deixando apenas uma fresta na porta. Já nos seus aposentos, tornou a deitar-se.
Com os olhos presos nas pinturas do tecto, soprou a vela, e o quarto
pareceu-lhe subitamente envolto em escuridão e desassossego. Não conseguiu
adormecer». In Maria Lopo de Carvalho, Marquesa de Alorna, Oficina do Livro, 2011,
ISBN 978-989-555-554-3.
Cortesia
de OdoLivro/JDACT