jdact
«(…) A neta sentou-se. Olívia
encostou a cabeça no ombro dela. Descansou o peso das oito décadas. Tita
sentiu-se envergonhada. No fundo, tinha ido até ali para chorar, para desabafar
a perda. Talvez fosse hora de olhar o mundo sem se colocar no centro dele.
Foram segundos de silêncio, as duas olhando para o horizonte. A avó foi a
primeira a falar. Perdeu o bebê, não é?, disse, sem encarar a neta, que assentiu
com a cabeça. Eu também perdi um bebê, sussurrou, enquanto passava os dedos pela
fotografia, como se, dessa forma, pudesse alcançar a criança. Foi só nesse
momento que a fotografia amarelada e gasta nas mãos de Olívia chamou a atenção
de Tita. Ela reconheceu a avó, ainda jovem. Estava grávida, provavelmente de
sua mãe. Mas não reconheceu o homem ao lado dela, nem o menino no colo. Quem
eram? Que lugar era aquele? Uma praça numa cidade europeia qualquer, com
certeza não era Lisboa, cidade de onde a avó viera. No verso, as palavras num
idioma que ela não conhecia. Antwerpen, Familie Zus, Verjaardag Bernardo, drie
jaar, 4 Februari 1940.
Tirou a fotografia das mãos da
avó, que não ofereceu resistência. Mantinha o olhar fixo, como se estivesse
preso a um ponto muito distante, num lugar que só ela conhecia. Avó, quem é
este homem? E esta criança? A voz saiu baixa e temerosa. A avó repetiu em
português as palavras escritas em flamengo. Antuérpia, família Zus, aniversário
de três anos de Bernardo, 4 de Fevereiro de 1940. Em seguida, levantou-se. Fez
sinal para que a neta esperasse. Instantes depois, voltou com outra fotografia,
da mesma época. Tita reconheceu a avó, o avô António, que morrera antes mesmo
de sua mãe nascer, e o tio Luiz Felipe ainda pequeno. Olívia colocou as duas
fotografias lado a lado. Depois de um breve silêncio, voltou-se para a neta e
apontou primeiro para a que lhe era familiar. Aqui está António, em Portugal,
pouco antes de vir para o Brasil, com Luiz Felipe..., ainda bebé. Eu cumpri o
prometido e cuidei dele até ao último momento, amei-o mais do que minha própria
carne. Pedi tanto que o câncer dele fosse meu, que me levasse e não me fizesse
sentir tudo de novo!
Tita ouvia incrédula. A avó
pegou, então, a outra fotografia e falou alternando o olhar do retrato para a
neta. Este é Theodor, quanta saudade... Fez uma pausa, que mais parecia uma prece,
ao olhar o homem alto e magro, para então escorregar os dedos sobre o rosto do
menino. E este é Bernardo, que eu não esqueço um minuto que seja. Tita fez
menção de falar, mas foi interrompida. A voz da avó saiu embargada, ao mesmo
tempo que apontava para a mulher grávida ao lado de Theodor. Esta sou eu,
esperando Helena, sua mãe. E, em seguida, apontou para a mulher da outra
fotografia, que parecia ser ela também. E esta é Olívia... minha irmã gémea. Eu
sou Clarice.
Norte
de Portugal. 1916
Manuel levantou-se com as
estrelas ainda no céu. Tinha mais um dia duro pela frente e, em breve, mais uma
boca para alimentar. Seria pai pela primeira vez e a qualquer momento,
prevenira a parteira. A vida corria certeira, no trilho. Ele se casara com
Josefina, a mulher que amava. O bebé seria o primeiro de uma grande prole. Era
o início da colheita das uvas. Prometia ser boa, a melhor em anos. O tempo
definitivamente tinha colaborado. Um Inverno rigoroso, seguido de um Verão com
muito sol e um começo de Outono sem chuva. O que mais se podia querer? Os
cachos gordos, maduros, estavam prontos para a colheita. A quinta ficava nos
arredores de São Lourenço de Sande, no município de Guimarães. A construção em
granito fora erguida pelo pai. Cada pedra da casa tinha uma gota de suor do
velho Joaquim. A casa de dois andares ficava no centro do terreno, cercada
pelas parreiras. Uma a uma plantadas por Joaquim. Quando Manuel nasceu, a mãe
passava dos trinta, e Joaquim dos quarenta. A criança ter vingado era um
milagre depois de tantos bebés perdidos. O menino cresceu, virou um homem
forte, de mãos grandes e calejadas que não fugiam da enxada. O solo seco e
poroso da quinta era uma benção para as videiras. As panturrilhas musculosas carregavam
os pés largos e achatados de tanto esmagar as uvas na piscina de pedra». In
Luize Valente, Uma Praça em Antuérpia, 2015, Saída de Emergência, colecção A
História de Portugal em Romances, 2015, ISBN 978-989-637-844-8.
Cortesia de SdeEmergência/JDACT