quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Uma Praça em Antuérpia Luize Valente. «Manuel levantou-se com as estrelas ainda no céu. Tinha mais um dia duro pela frente e, em breve, mais uma boca para alimentar»

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«(…) A neta sentou-se. Olívia encostou a cabeça no ombro dela. Descansou o peso das oito décadas. Tita sentiu-se envergonhada. No fundo, tinha ido até ali para chorar, para desabafar a perda. Talvez fosse hora de olhar o mundo sem se colocar no centro dele. Foram segundos de silêncio, as duas olhando para o horizonte. A avó foi a primeira a falar. Perdeu o bebê, não é?, disse, sem encarar a neta, que assentiu com a cabeça. Eu também perdi um bebê, sussurrou, enquanto passava os dedos pela fotografia, como se, dessa forma, pudesse alcançar a criança. Foi só nesse momento que a fotografia amarelada e gasta nas mãos de Olívia chamou a atenção de Tita. Ela reconheceu a avó, ainda jovem. Estava grávida, provavelmente de sua mãe. Mas não reconheceu o homem ao lado dela, nem o menino no colo. Quem eram? Que lugar era aquele? Uma praça numa cidade europeia qualquer, com certeza não era Lisboa, cidade de onde a avó viera. No verso, as palavras num idioma que ela não conhecia. Antwerpen, Familie Zus, Verjaardag Bernardo, drie jaar, 4 Februari 1940.
Tirou a fotografia das mãos da avó, que não ofereceu resistência. Mantinha o olhar fixo, como se estivesse preso a um ponto muito distante, num lugar que só ela conhecia. Avó, quem é este homem? E esta criança? A voz saiu baixa e temerosa. A avó repetiu em português as palavras escritas em flamengo. Antuérpia, família Zus, aniversário de três anos de Bernardo, 4 de Fevereiro de 1940. Em seguida, levantou-se. Fez sinal para que a neta esperasse. Instantes depois, voltou com outra fotografia, da mesma época. Tita reconheceu a avó, o avô António, que morrera antes mesmo de sua mãe nascer, e o tio Luiz Felipe ainda pequeno. Olívia colocou as duas fotografias lado a lado. Depois de um breve silêncio, voltou-se para a neta e apontou primeiro para a que lhe era familiar. Aqui está António, em Portugal, pouco antes de vir para o Brasil, com Luiz Felipe..., ainda bebé. Eu cumpri o prometido e cuidei dele até ao último momento, amei-o mais do que minha própria carne. Pedi tanto que o câncer dele fosse meu, que me levasse e não me fizesse sentir tudo de novo!
Tita ouvia incrédula. A avó pegou, então, a outra fotografia e falou alternando o olhar do retrato para a neta. Este é Theodor, quanta saudade... Fez uma pausa, que mais parecia uma prece, ao olhar o homem alto e magro, para então escorregar os dedos sobre o rosto do menino. E este é Bernardo, que eu não esqueço um minuto que seja. Tita fez menção de falar, mas foi interrompida. A voz da avó saiu embargada, ao mesmo tempo que apontava para a mulher grávida ao lado de Theodor. Esta sou eu, esperando Helena, sua mãe. E, em seguida, apontou para a mulher da outra fotografia, que parecia ser ela também. E esta é Olívia... minha irmã gémea. Eu sou Clarice.

Norte de Portugal. 1916
Manuel levantou-se com as estrelas ainda no céu. Tinha mais um dia duro pela frente e, em breve, mais uma boca para alimentar. Seria pai pela primeira vez e a qualquer momento, prevenira a parteira. A vida corria certeira, no trilho. Ele se casara com Josefina, a mulher que amava. O bebé seria o primeiro de uma grande prole. Era o início da colheita das uvas. Prometia ser boa, a melhor em anos. O tempo definitivamente tinha colaborado. Um Inverno rigoroso, seguido de um Verão com muito sol e um começo de Outono sem chuva. O que mais se podia querer? Os cachos gordos, maduros, estavam prontos para a colheita. A quinta ficava nos arredores de São Lourenço de Sande, no município de Guimarães. A construção em granito fora erguida pelo pai. Cada pedra da casa tinha uma gota de suor do velho Joaquim. A casa de dois andares ficava no centro do terreno, cercada pelas parreiras. Uma a uma plantadas por Joaquim. Quando Manuel nasceu, a mãe passava dos trinta, e Joaquim dos quarenta. A criança ter vingado era um milagre depois de tantos bebés perdidos. O menino cresceu, virou um homem forte, de mãos grandes e calejadas que não fugiam da enxada. O solo seco e poroso da quinta era uma benção para as videiras. As panturrilhas musculosas carregavam os pés largos e achatados de tanto esmagar as uvas na piscina de pedra». In Luize Valente, Uma Praça em Antuérpia, 2015, Saída de Emergência, colecção A História de Portugal em Romances, 2015, ISBN 978-989-637-844-8.


Cortesia de SdeEmergência/JDACT