Norte
de Portugal. 1933
«(…) Casou-se aos dezasseis anos
com um homem vinte e cinco anos mais velho, primo da mãe. Do casamento
arranjado nasceu António. O marido era um bom homem, mas sem nenhuma ambição.
Morreu quando António tinha onze anos. Deixou quase nada para a mulher e o
filho, mas o suficiente para Lina pôr literalmente o pé na estrada e partir do
ensolarado Algarve para o norte de Portugal. Ia começar vida nova. Escolheu
Guimarães a esmo, porque ali havia nascido Portugal. Mal chegou à cidade, filho
numa mão e mala na outra, deparou-se com Josefina e a enorme barriga. Foi
empatia à primeira vista. Josefina era uma mulher cheia de vitalidade, o
combustível de que Lina precisava para recomeçar. No mesmo dia, ganhou o
emprego na quinta; em seguida a patroa morreu, e Lina viu-se atada àquela
família mais destroçada que a dela. De lá só saiu no Verão de 1933, directa
para o cemitério. Foi enterrada no mesmo jazigo de Josefina e Manuel.
Lina foi uma mãe para as meninas.
Embora a deficiência física a impedisse de correr entre as parreiras e brincar
nas árvores, era ela quem contava as histórias para dormir, penteava os cabelos
e espantava os fantasmas dos pesadelos nocturnos. Aos poucos, o ar carrancudo
foi dando lugar aos sorrisos. No fim da vida, era fácil vê-la gargalhar. A
quinta também fora o melhor lugar para criar António. Se Manuel ignorava as gémeas,
o menino passou a ser, para ele, o único elo com o mundo. Nos primeiros meses
depois da morte de Josefina, ensinou-lhe tudo sobre as uvas. António foi um
aluno exemplar, um menino dedicado. Acordava com o dia escuro, trabalhava sem
cansar. Tornou-se um rapaz musculoso, bonito, que tinha os traços da mãe, porém
sem a marca de seus sofrimentos. Manuel era o pai que ele não teve, mas não era
aquele o futuro que queria. António tinha outro temperamento. Era divertido,
corajoso, gostava de aprender. Queria ser grande, conhecer o mundo. Tinha muito
respeito por Manuel, mas não era isso que o prendia à quinta. Era algo maior, e
justamente este algo, que anos depois se revelaria, é que o levou a partir para
Lisboa logo após a morte do patrão. Bernarda, a princípio, fechou a cara e, por
semanas, atazanou Lina, que escutava sem revidar, afinal os argumentos tinham
lógica. Apesar de ter colocado um amigo, que conhecia o trabalho tanto quanto
ele, para cuidar da quinta, não deixava de ser um abandono.
Lina, tu sabes que te tenho como
uma filha e ao António como um neto. Mas isso é traição pior que a de Judas.
Manuel ensinou tudo a esse menino, e agora ele abandona-nos! Se este saco de
ossos, falava apontando o próprio corpo, não é digno de consideração, que ao
menos a tivesse por ti, que és mãe dele, ou pelas meninas, que ele viu nascer!,
e saía esbravejando pela casa. Se Lina tinha uma qualidade, era a de não julgar
as pessoas. O filho partia por alguma razão e, um dia, todos viriam a saber.
Ela nunca soube. António voltou à quinta, quatro anos depois, para enterrar a
mãe e notar que nada havia mudado, só aumentado. Olívia agora era uma mulher,
tinha dezassete anos, e ele a amava mais do que nunca. Era por Olívia que ele
tinha partido». In Luize Valente, Uma Praça em Antuérpia, 2015, Saída de Emergência,
colecção A História de Portugal em Romances, 2015, ISBN 978-989-637-844-8.
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