Violante
Andrade. Évora, 1 de Junho, 1545
«(…) Mas outras e mais prementes
coisas há que agora assim me deixam: Luís Vaz esquiva-se-me sem que eu
descortine a razão. Sou formosa, segura, desejável, nobre, rica, culta, que sei
eu... Sou eu mesma o fim e o princípio da sua tormenta, como ele mesmo mo
recita: nunca o prazer se conhece senão depois da tormenta. Já antes se me havia
negado. Ainda em Xabregas, bastas vezes o exigi em minha alcova e com grande
desfaçatez se me escusou: ora havia de ir acudir à madrasta, ora era Bento que
descia à capital, ora, pasme-se a leviana aleivosia, não podia delongar-se, a
fim de honrar um encontro com Jorge Montemor, a quem havia de mostrar umas rimas
muito belas que escrevera! Isto sabendo eu que Jorge Montemor passara a Castela
ao serviço da Corte de Carlos V. Pior ainda: quando com ele me cruzara no meu
palácio de Xabregas, Luís Vaz cheirara-me a vinho, chegando a apresentar-se a
Antoninho com um golpe fundo no rosto, feito à faca, e não consentindo sequer
que mandasse chamar quem o tratasse. Sei como folgava pelas ruas antes de me
conhecer, atando e desatando amores, pagando por um corpo mais do que por uma refeição
condigna, desbaratando o tempo a versejar aos postigos e alpendres por meia dúzia
de reais, perdendo-se em brigas com pretos e mulatos pagos por fidalgos
desavindos que o alcunham de Trinca-Fortes. Talvez a minha aguda
suspeita resida nesta nova prenhez que dele ocultei. O meu desejo é tão forte,
tão alto, tão urgente e tão insaciável que me basta ouvir-lhe a voz e ler-lhe
os sonetos para estar certa de que é Luís Vaz o maior desejo e a maior
desajustada esperança que acalento nestes primeiros meses de esperanças.
Tudo me cansa..., os olhos
doem-me com o tamanho deste dia que se me afigura sem fim e que ainda não vai
em metade... Por mais que o senhor meu marido insista em planear a recepção a
Bernardim Ribeiro, que por Sintra anda a sarar as feridas de amor pela dama que
o preteriu, por mais que se anime a convidar Pedro Nunes e Damião Góis e até
Francisco Holanda, que regressa à Pátria, depois de muito ter privado com o
mestre Miguel Ângelo, eu já o não oiço. De nada agora me importam poetas,
cronistas, matemáticos, pintores. O pensamento não me sai do corpo e o meu
corpo não se separa nunca do corpo de Luís Vaz. Nem mesmo me perco já nas
intrigas que por aí correm. Para sobreviver preciso do poeta... Foi nesse
serão, em que não prestei qualquer atenção às praças de África, ao cerco a Diu,
aos autos-de-fé no Terreiro do Paço, que
tomei uma atitude de alto risco: ia, de uma vez por todas, pôr à prova o
carácter do presumido Luís Vaz.
Mandei chamar Joana, uma das mais
astutas damas da rainha. Estava ali perto, nos paços de Évora. Sabia do apetite
que ela tinha pelo dinheiro e que logo o desbarataria em mais um bracelete de ouro.
Estava disposta a oferecer-lhe uma quantia avultada para que seduzisse Luís Vaz.
Se ele caísse no engodo, matá-lo-ia; se me fosse fiel, entregar-me-ia para
sempre. A coragem é quase tão contagiosa como a cobardia e eu, Violante,
condessa de Linhares, sempre fui uma mulher corajosa». In Maria João Lopo Carvalho,
Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.
Cortesia de
OdoLivro/JDACT