«(…) Sentia a minha mulher
acordada. Poderia ter-me lembrado que faltavam poucos dias para a data que o
médico tinha dito, mas lembrava-me apenas das noites em que o calor não a tinha
deixado adormecer. Era o início de Setembro. Ela dava voltas impacientes na
cama. De cada vez que se virava, o mundo ficava suspenso nos seus gestos porque
era tudo muito lento, porque era difícil e, às vezes, parecia que era
impossível. O seu corpo era grande de mais. Os seus braços tentavam agarrar-se
aos lençóis. Não encontrava posição. As juntas da cama rangiam. Eu estava
acordado, adormecido, acordado, adormecido. Quando adormecia, continuava meio
acordado. Quando acordava, continuava meio adormecido. Nos pensamentos vagos
que tinha, acreditava que era o calor que não a deixava adormecer totalmente. Estremunhado,
abri os olhos quando senti as pernas quentes e molhadas, quando ela me abanou
os ombros, gritando e sussurrando: acorda! Rebentaram-me as águas. Custou-me a
acertar com os pés nas calças. Tentava acertar com um pé e dava pulinhos com o outro.
Ela fechou-se na casa de banho. Quando bati à porta, pediu-me para ir avisar a
Marta. Entrei no quarto das nossas filhas às escuras. A Marta acordou
assustada. Esperei pelo silêncio até se ouvirem apenas as marés da respiração
da Maria a dormir. Nesse momento, disse-lhe: a tua mãe está quase a ter a
criança. Vamos agora para a maternidade. Toma conta dos teus irmãos quando
acordarem. Na penumbra, os olhos da Marta escutavam-me muito sérios. Saí do
quarto das nossas filhas. A Marta ficou sentada na cama. Os seus olhos eram
preocupados e brilhavam. Abri a porta do quarto do Simão. Era ainda tão
pequeno, e dormia. Fechei a porta devagar.
Procurei a minha mulher.
Atravessei o corredor. A camioneta tinha menos de um ano e, nos últimos meses da
gravidez da minha mulher, estacionava-a à porta de casa. Amparei a entrada da
minha mulher na camioneta. Corri para a porta do condutor. Arranquei em
segunda. Limpei as remelas com o indicador nas primeiras vezes em que parámos
atrás de automóveis parados. Prestava pouca atenção ao início daquela manhã. Às
vezes, a minha mulher começava a queixar-se mais alto. Então, acelerava, dava
solavancos nos carris dos eléctricos, ultrapassava automóveis que apitavam,
passava por semáforos vermelhos. Depois, tinha automóveis à frente e não
conseguia passar. Virava-me para a minha mulher e perguntava-lhe se estava bem.
Olhava para o relógio, o tempo era muito rápido. Perguntava-lhe outra vez se
estava bem. Acelerava um rugido do motor sem sair do lugar, olhava para o
relógio, o tempo era muito rápido. Perguntava-lhe outra vez se estava bem e,
quando conseguia andar, voltava a acelerar: solavancos nos carris dos
eléctricos, ultrapassar carros, passar semáforos vermelhos. Ela, no seu
sofrimento, dizia-me: vai com calma.
Eu enervava-me: como é que eu
posso ir com calma? Ela dizia-me: calma. E chegámos à maternidade, corri para
ela, e entrámos de braço dado, eu a puxá-la, ela pesada com dores, e eu a
puxá-la. Dirigi-me a uma enfermeira e, antes de conseguir dizer alguma coisa, a
enfermeira disse-me: calma. E levou-a. A minha mulher virou-se para trás para
me ver sozinho, com os braços e com os olhos abandonados. E esperei. Olhava
para o relógio. A manhã. A manhã com o tamanho de um Verão. Toda a manhã.
Olhava para o relógio. O tempo era muito lento. A enfermeira passava por mim,
eu ia atrás dela e, antes de conseguir dizer alguma coisa, era ela que me
dizia: tenha calma. Vá comer qualquer coisa. E eu desistia. Foi depois da hora
de almoço que a enfermeira voltou a entrar na sala de espera e me disse: então,
não quer ir ver o seu filho? Os meus pés deslizaram pelo chão de mosaicos, o
meu corpo atravessou os corredores de paredes cinzentas e de lâmpadas quase
fundidas, intermitentes, a falharem. Os meus olhos não viam nada. E entrei no
quarto. De uma vez: a minha mulher deitada na cama a segurar o nosso Francisco
nos braços. A sorrir com a vida. Caminhei mudo e lento até à cama. Não soube dizer
nada. Mais tarde, haveria de dizer que, logo ali, tinha percebido tudo aquilo
de que ele seria capaz.
Mais tarde, haveria de dizer
tantas coisas. Naquele momento, não soube dizer nada. Toquei a face do menino
com as pontas dos dedos. Toquei a testa da minha mulher com os lábios. O tempo
não existia. Sem um instante para gastar com perguntas sem resposta, a minha
mulher volta a entrar na casa de banho com a íris ao colo e, quando abre a
porta do armário dos medicamentos, não quer pensar em quem poderia estar a
telefonar-lhe. A íris já é pesada. A minha mulher senta-se na ponta do bidé e
pousa-a no chão. À sua frente, a íris fica de pé, com a mão aberta e estendida
para ela. São uma avó e uma neta. Sobre os joelhos, a minha mulher equilibra
algodão, tintura de iodo, fita adesiva e um rolo de ligadura. Tem a voz
delicada porque quer que a íris não chore mais. Tenta sorrir e tenta distraí-la:
agora, vinhas ao hospital para te curares. Então diga lá, senhora, teve um
acidente? Com os lábios apertados e os olhos muito grandes, a íris murmura
gemidos magoados, quase fingidos, e estende-lhe mais a mão. Oh, vamos já curá-la.
E despeja tintura de iodo sobre uma bola de algodão que aproxima da ferida». In
José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos, 2006, Bertrand Editora, Quetzal
Editores, 2009, ISBN 978-972-564-823-0.
Cortesia de QuetzalE/JDACT