«(…) Finge que não ouve o nosso praguejar,
escolhe por nós as entradas e o vinho. Tinha onze anos quando começámos a vir
para a tasca, mas trata-nos como filhos malcomportados. Aos onze anos já nos
tratava assim. Pouco falamos de mulheres, pelo menos das nossas. Comentamos as
que aparecem na televisão, as actrizes, as ministras, as jornalistas.
Comentamo-las basicamente para dizer que o que lhes falta é uma …da fenomenal.
Somos todos fenomenais, à volta desta mesa, picando queijos, enchidos,
pataniscas, chamuças e torresmos. Vai uma saladinha? Achas-nos com cara de
grilos, Celinha? Queres matar-nos? Fazia-vos bem. Célia, querida, morrer quase
nunca faz bem. Célia ri-se. Não se intimida com a nossa aparatosa boçalidade.
Não nos dá muita importância. É uma de nós. O jogo arrasta-se, enfadonho. Só as
injustiças lhe dão alguma animação: um penálti não marcado, a favor do Benfica.
O Guilherme agarra-se ao seu amuleto: um urso de peluche com cachecol do
Benfica, no qual tem fé porque lhe foi oferecido por um sportinguista. Há uma
nítida falta de entrosamento da equipa, que joga à distância, espalhada. O
tempo da bola está sistematicamente atrasado, com lançamentos longos de mais,
ou passes curtos e atrasados. Não há contra-ataque, nem movimentação. O Porto
também parece desarrumado, mas tem uma velocidade muito maior. Vocês têm de
aprender a correr, rapazes. O futebol é para quem tem pernas para isso. Cala-te,
o árbitro está comprado, aquele penálti até um cego via. Desculpas, pá.
Desculpas. Só justifica quem perde. Aliás, depois de terem ganho a taça ao
Sporting através da vergonhosa anulação de um golo, vocês deviam abster-se de
falar da seriedade dos árbitros durante um ano inteiro. Pelo menos. Gooooooolo!
Só eu me levanto em êxtase. Gosto
destes êxtases solitários que me oferecem alegria, vitória e vingança num só
gesto. No estádio, este prazer torna-se perigoso, isto é, ainda mais vibrante. Gritar, Chega-lhes,
Porto! Num estádio cheio de benfiquistas é um acto de bravura sujeito a
consequências imprevisíveis. Em certa ocasião, levei uma tareia à saída. Agora
começo a ser demasiado famoso para levar tareias. As pessoas não estão
dispostas a respeitar muitas coisas além da fama. O que, em Portugal,
representa uma fartura de respeitinho. Qualquer pessoa que apareça na televisão
de vez em quando é famosa, e qualquer pessoa pode aparecer na televisão de vez
em quando. Chama-se-lhe politólogo e pronto. O restaurante está cheio de
benfiquistas ferrenhos que desatam a resmungar contra o tempo de jogo, dizendo
que o árbitro prolongou o desafio para lá do devido, de modo a que o Porto
pudesse completar a jogada do golo. Como se o Porto não estivesse já a ganhar.
Um golo extra tem um gosto de presente. Não gostam de ver bons golos, é? Não
estão habituados, os vermelhinhos… Pronto. Ganhou o Porto, a próxima rodada é
minha. Augusto tem bom perder. É um homem fácil. Gaba-se de ser um homem fácil.
Vê qualidades em todas as mulheres. É administrador de uma empresa
discográfica, sabe defender os
méritos da música mais manhosa. Perdeu uma riqueza infinita com a independência
de Angola, pelo menos é o que ele diz. Não se cala com os encantos da ilha do
Mussulo da sua adolescência, mas não é, de modo algum, um ressentido. Chegou a
ser militante do Partido Comunista. Durante a juventude, encontrou na luta uma
espécie de acelerador da sua identidade, ou superador das frustrações, o que
vem a ser o mesmo. Com a idade tornou-se socialista, ou julga que se tornou.
Mantém todavia o farfalhudo bigode da era estalinista, conjugado agora com uma
volumosa cabeleira cor de prata fosca. Deve gastar uma pipa de latas de laca
para manter o penteado. Não há vento nem humidade que lhe abata um só fio da
moldura. Quando Pedro começa a criticar o governo, Augusto enfuna-se: o que é
que vale a opinião sobre Portugal daqueles que nunca de cá saíram? Tu és
descendente do velho do Restelo, meu filho. Um menino da mamã com uma visão de
quintal. Pedro vitupera o arrivismo dos retornados e acusa Augusto de ser um
novo-rico do neoliberalismo. Augusto põe-se de pé e puxa pela sua medalha
costumeira: os-sete-dias-sete-em-que-foi-sujeito-à-tortura-do-sono-e-resistiu».
In Inês Pedrosa, Os Íntimos, Publicações dom Quixote,
2010, ISBN 978-972-204-047-1.
Cortesia de
PdomQuixote/JDACT