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Teria certamente dado voz a este grito de gelar o sangue se, vinda de nenhures,
uma pedra não tivesse atingido o bruto na cara. Tinha sido atirada com tanta
pontaria e com uma força tão certeira que o malfeitor cambaleou para trás com o
choque. Caído sobre um joelho, pareceu desorientado com o que acontecera até
dar com a pedra culpada caída inocentemente junto dos seus pés. Olhando em
volta à procura do voluntarioso David que se atrevera a desafiá-lo, depressa
fixou em mim um olhar ultrajado. Com a minha camisa branca de folhos, calções
pretos com riscas vermelhas e botas de fivelas, eu era um inimigo muito
improvável. Naquele tempo, eu tinha mesmo canudos angelicais e aquilo a que o
meu pai chamava olhos de corça cinzento-azulados. Mesmo assim, recuei
vários passos e comecei aos soluços, uma reacção provocada pelos nervos que já
tivera muitas vezes. Tencionava fugir se ele me ameaçasse, mas, em vez disso,
desviou o olhar para um rapazito no outro lado da rua. Este parecia ser mais
velho do que eu uns bons três anos e vestia uma camisa rota e calções muito
sujos. Os pés descalços estavam tão porcos que pareciam raízes arrancadas do
solo. Tinha a cabeça rapada.
Estávamos
no princípio do Verão de 1800 e, apesar da alvorada de um novo século, ainda
era uma época em que as crianças nunca falavam aos adultos sem primeiro terem sido
convidadas a fazê-lo. Uma pedra atirada por um enjeitado miseravelmente vestido
a um cocheiro de libré ao serviço de um homem rico equivalia a uma heresia. O
ferido levantou-se com dificuldade, apalpando a cara com as pontas dos dedos.
Olhando sem querer acreditar para o sangue que ficara na mão, atirou-se para a
frente. Seu filho-da-mãe!, balbuciou. Reunindo a sua força enfraquecida, atirou
a pedra com um grunhido. O projéctil voou por cima e para lá do seu alvo,
fazendo ricochete na fachada da casa que pertencia ao tio Aurélio, o sapateiro.
Aquele foi o último acto que o nosso malfeitor ia tentar nesse dia. Os olhos
reviraram-se-lhe nas órbitas e ele caiu desamparado, a cabeça batendo no chão
com um ruído surdo que não augurava nada de bom. Eu tremia de medo e excitação.
Nunca me tinha sentido tão vivo. Imaginem, uma pedra atirada por um gaiato sujo
derrubar um brutamontes horrendo a menos de duzentos passos da minha casa!
A
tia Beatriz estava a levantar-se, os braços apertados à volta da barriga como
se estivessem a proteger uma criança por nascer. Sacudia a cabeça, muito
confusa, claramente a tentar perceber o que tinha acontecido. O sangue
escorria-lhe do lábio superior até ao queixo; um dos olhos estava inchado e
fechado e, mais tarde, iria infectar. Tornou-se um berlinde leitoso com um
centro cinzento enevoado até ao resto dos seus dias. Daniel correu para ela,
mas ela abanou uma mão trémula para o fazer parar. Vai para casa, disse ela,
limpando a boca. Falamos mais tarde. Vai-te embora daqui antes que haja mais
sarilhos. Por favor. Ele abanou a cabeça. Não vou. Pelo menos, enquanto aquele
pedaço de mer… não for varrido para um monte de estrume, disse ele apontando o
vilão. A pronúncia de Daniel identificava-o como um morador da zona ribeirinha.
Senti inveja da forma como ele parecia feito para o Porto, uma cidade que tinha
a sua quota-parte de clubes de cavalheiros e jardins formais, mas que tinha, no
seu coração, um labirinto de vielas escuras frequentadas por bufarinheiros,
catraios e ladrões de pouca monta.
Daniel,
ouve o que te digo, replicou a tia Beatriz, respirando com dificuldade. Tens de
sair da cidade. Daqui a dois dias, encontramo-nos em tua casa. Por favor, antes
que haja sarilho... A mulher teria continuado a suplicar, mas os vizinhos
começavam a juntar-se. Pouco depois, um grupo de homens, uns ainda com as
roupas de dormir, outros com o peito nu, tinham formado um círculo em redor do
cocheiro caído. Está morto?, perguntou o mestre Tomás, o carpinteiro, ao
cunhado Tiago, o pedreiro, que tinha colocado as costas da mão em cima do nariz
do homem para ver se sentia alguma respiração. Várias vizinhas corriam agora a
ajudar a tia Beatriz, levantando-a e fazendo perguntas sobre o homem e o que o
fizera ficar tão furioso. Aproximei-me do grupo dos homens. Não, ainda está
vivo, respondeu Tiago desapontado. Um começo perfeito para um dia de
coscuvilhice teria exigido um assassinato, evidentemente. A tia Maria Mendes,
que tinha a compleição física de um touro, abriu caminho por entre os homens e
cuspiu na cara do vilão sem sentidos. Porco!, gritou ela. E tu aí, filho!,
gritou Tiago, o pedreiro, para Daniel. Por amor de Deus, o que é que pensas que
estás a fazer a atirar pedras às pessoas? Espera aí!, interveio o tio Paulo, o
latoeiro, em defesa do rapaz. Ele só estava a ajudar a Tia Beatriz. Mas com uma
pedra do tamanho de uma laranja!, exclamou o tio Alberto. Se eu tivesse uma
faca, tinha cortado a garganta do cocheiro!, exclamou um homem que eu não
conseguia ver». In Richard Zimler, Meia-noite ou O Princípio do Mundo, 2003, Porto
Editora, 2017, ISBN 978-972-004-727-4.
Cortesia de PEditora/JDACT