Novas
Cartas Portuguesas. Ou de
como Maina Mendes pôs ambas as mãos sobre o corpo e deu um pontapé no cu dos
outros legítimos superiores
(…)
Primeira
Carta II
«Venceste, digo. Logo sou eu que
te venço e tu perdes, pois confiado na vitória esqueces a vigilância sobre mim,
que te examino. Friamente? Que outra maneira tenho de examinar as coisas, os
outros: com toda a minha paixão? Aquela alimentada pelo simples prazer ou dor que
me dá senti-la. Assim te procuro, te uso, te escrevo; porém as palavras não são
elos, nem pontes, nem laços a desatar na solidão das salas. Em salas nos
queriam às três, atentas, a bordarmos os dias com muitos silêncios de hábito,
muito meigas falas e atitudes. Mas tanto faz aqui ou em Beja a clausura, que a
ela nos negamos, nos vamos de manso ou de arremesso súbito rasgando as vestes e
montando a vida como se machos fôramos, dizem. De imediato então nos querem
tomar pela cintura, em alvos lençóis de cama se necessário, e filhos. Que mãos
nos galgam as carnes a fim de retomarem a posse, impondo-nos matriz de dono, porque
dano causamos na recusa e menstruo será o estigma que eles tomam por feminina
causa de nos exigirem a vontade e silenciarem o gesto com que nos despimos ou
negamos para nosso próprio proveito e palavra dada a nós mesmas. Direito
conquistámos, também, de escolher vingança, já que vingança se exerce no amor e
amor nos é dado de uso: usar o amor com as ancas, as pernas longas que sabem,
cumprem bem o exercício que se espera delas. E eis novamente em tema o
exercício, como se de paixão se tratasse e vingança fosse de amor uma das
justiças. Para que o exercício da justiça nos coubesse às três, dado de amor,
somente, talvez por defesa ou atenção a tudo. Como Maina sagraremos dessa crua
distância, o direito ao absurdo dos demais e seu. Saciadas estaremos algum dia.
Pergunto: daquela voraz saciedade em que nos pomos? Desembuçadas iremos, embora
saibamos que isso nos arrasta às ameaças, ao simples maldizer aceso com a
madeira dos usos e da raiva. O que nos restará então de nós depois desta
aventura? A freio nos quererão domar e a rédea curta. Mas de onde nossa mãe
dormia não nos vem sequer a fímbria desse susto; outras roupas costuramos para
nossa alegria e abandono. Que o abandono é outro pressuposto, costume ou uso em
roca onde se fia o gosto. Deste modo vamos construindo um azulejo: painel.
Carta por carta ou palavra escrita, volátil, entregue. A nós principalmente,
depois a eles; a quem nos quiser ler mesmo com raiva. E nunca o amor foi tão
inventado, logo verdadeiro: este prazer que abraço se te abraço e os teus
dedos, devagar, me vão correr nos braços, nas coxas, pelos seios. A que tontura
me entrego e me demoro. Em que grito rasgado me debato e cresço, me acrescento
e cresço, me enlouqueço e basto; ou não me basto e por isso te invento,
reinvento, te faço, te desfaço em meu sustento.
Atenta,
pois, nisto: o perigo de nos querermos ou nos negarmos. Tu homem dono que me
cavalga ou o pretende e eu que te pareço seguir nesse jogo, consentir nele,
porém, na realidade recusando-o, caminhando já em labirintos, outros, em verões
tórridos, por certo, mas meus trajectos. Porque só de minha posse na verdade te
importas: eu tua terra, colónia, tua árvore-sombra-programada para acalmar
sentidos. Também em ti me queres de clausura, tu próprio meu convento, minha
única ambição, afinal meu único deserto. Venceste, digo, e tu pensas: venci,
mas estás vencido. Minha lenta viração de nada, te acrescento carta a carta.
Tentando perceber de nós três todo e qualquer sequestro, da sua motivação como
projecto de paixão ou já paixão em si mesma. Assim, penso, estamos nós três
neste dar de mãos, nesta entrega, nesta independência nossa. Nos procuramos,
vos procuramos entender porquê. Quem sabe que desmesurado anseio este, se temos
não mais que um luxo, um acinte, uma avidez: pelo corpo deixo que a paixão me
tome: o corpo ele próprio já essa paixão ou objecto dela, sua raiz, sua
motivação, seu ócio. Como não recordar tuas ancas estreitas e jamais te dizer
paixão por elas? Assim, amo partes de ti, a ti por essa causa e de mim no
contentamento de as ter, me comprazer com elas. E como Soror Mariana, talvez
até digamos: que seria de mim sem tanto ódio e tanto amor (...). Porém, nunca
de pena mas prazer nos ficamos, irmãs, sem ser por nostalgia, ou crença. Pois
clausura rompemos, já rompemos. Que seria de nós sem tanto amor, pelo puro
desprazer que isso nos daria». In Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta,
Maria Velho Costa, Novas Cartas Portuguesas, 1972, edição anotada, Publicações
dom Quixote, 1998, 2010, ISBN 978-972-204-011-2.
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