Novas
Cartas Portuguesas. Ou de
como Maina Mendes pôs ambas as mãos sobre o corpo e deu um pontapé no cu dos
outros legítimos superiores
(…)
Terceira
Carta II
«A que certeza queremos chegar, a
que pudor maior, a que desolado concerto de três, instrumento de três cordas,
amarra de que nova barca, porque inflectimos para a inflacção da metáfora? Que
metáfora nos é Mariana se nos quase matamos para a deixar de fora? O susto
começou e a exaltação. Arrematado o tema arrebatado, que exaltação revém? Eis
que, dito o objecto por tal e sem relevo posto à margem quem cavalga,
amazonámos a ideia, mas o sentir revém, o sacro pacto: já os homens e as
infâncias nos contamos, as paisagens, as pausas, já laudas nos compomos e
dizemos quem e dizemos como (ou não) ao projecto
inicial, seguir de perto Mariana e as cartas. Eu, por mim, me estou naquela
ante-expulsão que sei já só as palavras postas em linha acalmam e não sei a
quem pedir contas desta tensão grave, de peso, deste mal grosso que o
escrevê-lo apenas apequena e por isso minto, resolve. Resolver não é dar ou subir.
A mente escreve e mente. E isso sinto, escrever-vos é sempre um menor bem.
Quem me obriga a perder a
seriedade do riso com que disse sim
ao passeio convosco, passar-vos, aos almoços no Treze, à deambulação
indestinada, pré-destinada?, de passos, mas exacta de trajecto da Capital ao
Treze e contra, tráfego e camionagem, ameaças? Porém, o deus que assiste à
candura de alcova / alcofa, meninas, sabe que foi gravemente, com pejo e
re-conhecimento, isto é, sem qualquer sorriso ao lado, que li no Porto, quando
as li, as cartas da possível Mariana, eu só comigo e à espera de bem-amar a
cidade com outrem (e, por isso, pela espera de alguém, seu exercício, bem a amando?)
Mas isso não o disse, não vo-lo disse, ao início, como se mais valeram então
meu engenho e idade que o que puder parecer ingenuidade. Que é então o que me
desdesenvolta, desvenda aos poucos o que uma de nós pense de pensado o
exercício da paixão dita força, dito sentido, o que uma de nós tagarela, conta,
desvaira, pensamos e contamos, intermeados já os traços, abandonadas a
acertarmos passos ou retidas?
Temos já rido e dito e escrito e
partilhado a mesa, o cherne (ó Alexandre, ó nihil), o sempre frango, a rectidão
das lulas. E alguns serões. Tu dizes é pouco, só ainda trocámos bilhetinhos e
tu dizes que maravilha, que maravilha, como dizes a tudo o que é novo, te abriga
e não obriga, tu de vidro. E tu te resguardas e entregas calma, dizendo tudo
sempre menos e o pensando, mesmo hesitante, exacta: as cartas da sóror?, porquê
as cartas da sóror?, bem vistas as coisas, são como o choro da esgraçadinha, a
lamúria da sopeira largada de mão (e assim passas como que a pano o Paulo Rocha
e os Verdes Anos. Mas não.), e tu outra dizes, que horror! E sabiamente teces
em teia de palavra solta, vestido, hábito a uma e outra e eu te respondo e tu
outra também, para que possamos habituar-nos. Habituar-nos na alva. Alba? E tu
de vidro e carne nova dás teu espaço à noite e teu passado, tagarelas a entrada,
minuetas tuas cercanias nunca próximas de gente, a gente das letras, os desapalavrados
disto, os objectos marcados pelo tu deixá-los lá, a tua antiguidade, porque tu
és a mais antiga e a mais nova, tu mentirás de amor tão grave e belamente que homem
que te deseje só poderá agradecer-te o consentido e passar-se lesto para o
Leste, para o lado do real dos réis, porque tu lhe darás, quotidianamente
instável, a realeza da ilusão, o desejo do desejo do desejo, a real necessidade
do supérfluo, a convulsividade da beleza, precária, precária. Talvez seja por
isso que o homem que faz vida contigo é o único que, até agora, nos visitou o trio
sem medo, pois que não crês em ti (ou Mariana) mais do que em ti seja crível,
tu te asseveras por desejada e neste limiar do círculo de nós hesitas bem,
seduzir pelo canto, sereiar, ou sofrer (-nos) mos pelas carências a confirmar.
E tu, alto, milhano cravado à
nossa ilharga (cito o que citamos, parecemos não saber de Mariana a Maina,
mitos, ritos, por onde ir) e tu, porque me abarcas de tua própria pedra? (Assim
seja, porém que assim também no é.) Tu, a que melhor pensas de pensar pensado e
dito, a que a uma serenas e à outra desolas, tu, solar e reserva, que queres
desta obra e deste amor posto nela, deste já apaixonante exercício, provar que
Mariana nunca foi mais que seu convento e que o senhor de Chamilly apenas lhe
foi pretexto de vir escrevendo a nosso encontro, a casa das mulheres de ciência
e prosa e nome aceite, que são sem
definir-se por ou de para algum desejo e sempre
contra? Se o exercício da paixão tens por maior que o seu (convívio) comércio
trágico, se dizes sem cegueira que objecto sempre é o objecto e Mariana sim, se
escrevendo intramuros, e Mariana não, se gemendo intrabraços, onde repousas de
ti, diz antes nós (que aqui prevejo), diz onde encontras paz fora de ti, tu que
jamais desaforas ou desatinas e és, como és tu? Com quem, senão a mãe de ti em
ti (isto?) te inventas? E não me chamem pedra ou gume (ainda que também) que
qual Mariana já me lamurio, não me pensem perante, não dances sempre tu o
desejo e chores tu pensante a ausência por definitiva, entre o exacto e o
convulso, a prima do estrangeiro homem não terá outro lugar onde reclinar a
cabeça senão este indeciso ventre (virgem?, compassivo? Mariana podia ter
parido?), as suas próprias cartas, seu passar, seu facto-fato-hábito-feito
escrita?» In Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho Costa, Novas
Cartas Portuguesas, 1972, edição anotada, Publicações dom Quixote, 1998, 2010,
ISBN 978-972-204-011-2.
Cortesia
PdQuixote/JDACT