A
Trindade
«(…)
Naquela madrugada de 1558, na mesma hora em que Mona Sofia, em Veneza, concluía
a sua esgotadora e rentável jornada, Inês de Torremolinos começava o seu dia de
alegre e desinteressada labuta. Uma ignorava a remota existência da outra. E
nada permitiria supor que uma e outra pudessem ter algo em comum. O acaso, porém,
traça às vezes caminhos impossíveis. Sem suspeitarem, sem nem se conhecerem,
uma e outra eram parte de uma mesma trindade, cujo vértice estava em Pádua.
O
corvo
No
ponto mais alto do maciço promontório que separa Verona de Trento, em cima do último
penhasco a destacar-se no colar de morros que coroa o pico do monte Veldo, tão
quieto quanto a rocha onde pousava, o perfil de um corvo recortava-se contra o
confim crepuscular, cujo epicentro dourado não parecia provir do sol, ainda
virtual, e sim da própria dourada Veneza. Como se o fundamento daquela abóbada
de luz fosse o das remotas cúpulas bizantinas da catedral de São Marcos. Era o crepúsculo
que antecede o dia. O corvo estava esperando. Tinha paciência. E sentia, como
sempre, uma fome voraz, mas não peremptória. O seu domínio era Veneza inteira:
a Veneza Eugânea, Treviso, Rovigo, Verona e, mais adiante, Vicenza, e também a
Veneza Júlia. Mas o seu paradeiro era em Pádua. Lá em baixo, tudo estava
disposto para a festa de São Teodorico, a festadi tori. Depois do meio-dia, a multidão, entre um copo
e outro, manearia cinco ou seis bois, um de cada vez, que seriam degolados,
seguros pelos chifres por outras tantas mulheres, com um único e exacto golpe
de sabre. Era como se o corvo soubesse que haveria de ser assim. Sentia com antecedência
o cheiro que mais apreciava. Mas também sabia que, com sorte, mal poderia
rapinar uma mísera tripa ou um olho, que teria de disputar com os cães. Não
valia a pena a viagem, nem o risco, nem o esforço. Ainda não se movera. Tinha a
paciência dos corvos. Poderia esperar até que os autómatos da Torre do Relógio
batessem a última badalada e, como todas as manhãs, surgisse do Canal Grande o
catamarã público que vinha recolher os cadáveres do Hospital de Humberto Primo
e levá-los até a Ilha do Cemitério. Mas tampouco valeria a pena. Com sorte,
poderia arrebatar uma tira de carne ruim, muito magra e já dizimada pela peste.
Girou sobre as patas e olhou para o lado oposto, o leste, onde ficava a sua
morada. Lá estava o seu amo. E então remontou voo em direcção a Pádua.
Voou sobre as dez cúpulas da basílica
e depois sobre a Universidade. Pousou sobre o capitel da quarta porta que dava
para o pátio interno. Esperava. Sabia que seu amo sairia dali de uma hora para
outra. Era o que acontecia todos os dias. Tinha paciência. Esticou uma asa e
enfiou o bico entre as penas. Parecia só dar atenção aos íntimos agrados que se
prodigava: ajeitar a plumagem do peito, livrar-se de um piolho. No mesmo
momento em que soou a badalada chamando para a missa, o corvo ficou tenso como
uma corda, abriu morosamente as asas, emitiu um grasnido surdo e preparou-se
para dar um pulo até ao ombro do seu amo, que, como todas as manhãs, haveria de
aparecer na arcada e, antes de encaminhar-se em direcção à paróquia, iria até à
morgue para dar ao corvo aquilo de que ele tanto gostava: uma tripa ainda morna.
Entretanto, naquela manhã de Inverno as coisas não seriam iguais. Já soara a
primeira badalada e o amo ainda não aparecera. O corvo sabia que o seu senhor
estava dentro do claustro, podia sentir o seu cheiro, podia até ouvir a sua
respiração. E no entanto ele não saía. O corvo grasnou de desgosto. Estava com
fome». In Federico Andahazi, O Anatomista, 1997, Editorial Presença, colecção
Grandes Narrativas, 1998, ISBN 978-972-232-362-8.
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