O
contrato da carne
«(…) A criada de quarto, Aurora, entrou
na sala e anunciou a chegada de um visitante. Quereis que eu fique?, perguntou
Tenório. Não, disse Mariana. O amanuense retirou-se para a sala onde
trabalhava. O homem falou que tem um assunto muito importante a tratar, disse
Aurora. Mariana sentiu um leve tremor. Como é ele? Descreve-o para mim. A
senhora não há de acreditar. As roupas mais esquisitas que jamais vi: um chapelão
de aba caída, camisa aberta no peito, cinto de couro, pistola, faca, botas
grosseiras. É negro? Mestiço?, perguntou Mariana. Branco! Tem o peito e os braços
peludos. Deve ser mascate. Garantiu que nada tem para vender, disse Aurora. De
onde veio ele? Das Minas do Sertão, disse a criada. Talvez traga notícias de vosso
pai, ou um presente mandado pelo barão. Se veio das Minas pode ser algo de
ouro. Um anel, brincos, braceletes, disse Aurora, sonhando acordada. Quando um
desconhecido nos traz um regalo, em seguida faz um pedido. Mariana recebera
alguns estranhos em sua casa, quase todos trapaceiros, espiões, curandeiros, caçadores
de heranças ou prerrogativas, advogados procurando clientes parvos ou coisas
piores. Manda-o embora. Oh, o homem veio de tão longe, suplicou Aurora. Mariana
hesitou. Fala-me mais sobre ele, disse à criada. Parece-me que tem todos os dentes
na boca. Onde haveria de tê-los? Nas orelhas? Fale-o esperar um pouco, disse
Mariana. E depois manda-o entrar. Decidiu receber o visitante ali mesmo,
recostada na poltrona. Estava farta da preguiça, cansada da modorra do Rio de
Janeiro. A solidão que escolhera agora a enfadava. Havia anos deixara de
frequentar as assembleias familiares nos sobrados dos nobres, onde as maiores
diversões eram a hipocrisia e a maledicência.
Valentim entrou. Tinha vinte anos,
era magro e usava roupas sujas de poeira. Trazia o chapéu na mão. Observou, de
maneira discreta, a dama de pele alva, cabelos negros, roupa escura; uma figura
sepulcral. As mulheres nas Minas tinham a pele queimada pelo sol, mas aquela
ali era marcada pela noite. Dona Mariana de Lancastre? Sim, sou eu. O que
quereis? Vosso pai pede que vossenhora vá para as Minas Gerais encontrar-se com
ele. Aurora tinha razão, pensou Mariana. Um mensageiro de dom Afonso. Porque
pedir a uma dama que se mova para tão longe assim? Acaso meu pai está
prisioneiro, ou inválido? Não poderia ele
vir ao meu encontro? Compreendo os vossos sentimentos. Mas o barão
tem um bom motivo para fazer-vos tal pedido. Sentai-vos, Mariana indicou a
cadeira. Estou bem em pé. Agradeço. Meu pai passa por alguma dificuldade? Não,
absolutamente, não se debate em tribulações. Porque ele mandou vós? Sois empregado dele? Somos
amigos e ele confia em mim. Conheço bem os caminhos. Comigo estareis segura. Porque
motivo, afinal, o barão de Lancastre deseja ver-me? Valentim fez uma pequena
pausa. Vosso pai está à morte. Mariana sentiu-se empalidecer, como se o sangue
tivesse parado de circular em seu corpo, embora o coração batesse
descompassadamente. As suas mãos ficaram frias. Valentim aguardou uns
instantes, antes de prosseguir na sua mensagem. Perdoai-me falar nisso neste momento,
mas foi um desejo expresso de vosso pai: ele pretende deixar-vos uma herança.
Possui uma boa casa, vinte e quatro escravos, datas demarcadas. Juntou cinco
arrobas de ouro. Isso é muito, embora haja homens que possuem cinquenta
arrobas.
Era
intrigante a maneira correcta como Valentim se expressava. O domínio das
palavras costumava ser circunscrito ao clero e a raros nobres e advogados. Em
que arraial está o meu pai? No de Ouro Preto, na região das Minas Gerais.
Podemos ir pelo mar até ao lugar de Parati, e depois... Podemos? Mas eu não
disse que irei. Quero um dia para pensar. Como quiserdes. Valentim retirou-se. Mariana
ouviu o canto de Aurora na cozinha; embora tudo permanecesse aparentemente
igual, o dia não voltara à sua normalidade». In Ana Miranda, O Retrato do Rei,
Editora Schwarcs, Companhia das Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.
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