Castelo
Sant’Angelo. Roma. 1453
«(…) Ficará alguns meses em observação
e, em seguida, será enviado ao mundo sob minhas ordens, continuou o homem. Irá
aonde eu ordenar e estudará o que encontrar por lá, mas vai reportar-se a mim.
Poderá julgar e punir os pecadores que encontrar, poderá exorcizar demónios e
espíritos impuros. Poderá aprender e também questionar tudo, o tempo todo, mas servirá
a Deus e a mim da maneira que eu ordenar. Prestará obediência a mim e à Ordem,
caminhará no mundo invisível e verá coisas invisíveis, então as questionará. Seguiu-se
um súbito silêncio. Pode ir, disse o homem, por fim, como se tivesse dado
instruções muito simples. Luca saiu do seu transe silencioso e andou até à
porta. Quando as suas mãos tocaram a maçaneta de bronze, o homem falou: mais
uma coisa... Lucas se virou para ele. Dizem que foi uma criança trocada, não é
mesmo? A acusação desabou na sala como uma chuva de gelo repentina. O povo da
aldeia? Quando faziam mexericos sobre o nascimento de um menino, tão bonito e inteligente,
de uma mulher estéril durante toda a vida com um homem que não sabia ler ou
escrever... Diziam que foi trocado, deixado na porta da sua mãe pelas fadas, não
diziam? Seguiu-se um silêncio apático. Nada transparecia no rosto jovem e sério
de Luca. Nunca respondi a tal pergunta e espero jamais responder. Não sei o que
diziam a nosso respeito, respondeu, áspero. Era um povo ignorante, covarde e
rural. Minha mãe dizia para não dar atenção ao que falavam. Dizia que ela era
minha mãe e que me amava acima de todas as coisas, e era só isso que importava,
não histórias sobre filhos das fadas.
O homem deu uma risada curta e
gesticulou para que Luca fosse embora, esperando a porta se fechar às suas
costas. Talvez esteja enviando uma criança trocada para mapear o próprio medo,
disse para si mesmo, enquanto arrumava os papéis e empurrava a cadeira para trás.
Uma piada para o mundo visível e o invisível: um filho das fadas na Ordem! Um
filho das fadas mapeando o medo!
Castelo
de Lucretili. Junho de 1453
Enquanto Luca era interrogado, a
cerca de 30 quilómetros a nordeste de Roma, no Castelo de Lucretili, uma jovem
estava sentada numa cadeira sumptuosa na capela da casa de sua família. Os
olhos azul-escuros estavam fixos no crucifixo requintado, o cabelo claro preso
numa trança descuidada sob um véu preto, o rosto tenso e pálido. A chama de uma
vela amparada por uma tigela de cristal cor-de-rosa bruxuleava sobre o altar
enquanto o padre movia-se nas sombras. Ela ajoelhou-se com as mãos firmemente entrelaçadas,
rezando com fervor pelo pai que lutava pela vida nos próprios aposentos e se
recusava a vê-la. A porta nos fundos da capela abriu-se, e o seu irmão entrou
em silêncio. Viu-a de cabeça baixa e foi ajoelhar-se ali ao lado. Ela o olhou
de soslaio. Era um jovem bonito, de cabelos pretos, sobrancelhas escuras, o
rosto marcado pela tristeza. Ele se foi, Isolde, ele se foi. Que descanse em
paz. O rosto branco se enrugou, e a moça cobriu os olhos com as mãos. Ele não
chamou por mim? Nem mesmo no fim da vida? Ele não queria que o visse sofrendo.
Queria que se lembrasse dele como foi, forte e saudável. Mas as últimas
palavras foram uma bênção para ti, e os últimos pensamentos foram sobre o teu
futuro. Ela negou, sacudindo a cabeça. Não acredito que ele não me tenha dado a
sua bênção pessoalmente. Giorgio afastou-se dela e foi falar com o padre, que
logo correu para o fundo da capela. Isolde ouviu o grande sino entoar o seu
dobre: logo todos saberiam que o grande cruzado, o lorde de Lucretili, estava
morto. Tenho de rezar por ele, disse ela em voz baixa. O corpo virá para cá? O
rapaz assentiu. Farei a vigília esta noite, decidiu Isolde. Sentar-me-ei ao
lado dele agora que está morto, embora ele não o tenha permitido quando vivo. Ela
hesitou. Ele não me deixou uma carta? Nada? O seu testamento, respondeu o irmão,
com delicadeza. Ele fez planos para ti. Bem no fim da vida, estava pensando em ti.
A moça assentiu, os olhos azul-escuros encheram-se de lágrimas. Então ela
entrelaçou as mãos e rezou pela alma do pai.
Isolde
passou a primeira longa noite depois da morte do pai numa vigília silenciosa ao
lado do caixão, na capela da família. Quatro dos homens de armas do pai estavam
ali parados, um em cada ponto cardeal, as cabeças baixas sobre as espadas, e a
luz das velas altas fazendo cintilar a água benta espargida na tampa do caixão.
Isolde, vestida de branco, passou a noite inteira ajoelhada diante do esquife,
até que o padre veio, ao amanhecer, rezar a Prima, o primeiro serviço de orações
do dia. Foi só então que ela se levantou e deixou que as damas de companhia a conduzissem
ao quarto para dormir. Ficou ali até chegar uma mensagem do irmão pedindo para
que ela se levantasse e saísse do quarto, era hora do jantar e os criados
queriam ver sua senhora. Ela não hesitou: fora criada para cumprir o seu dever
com a grande casa e tinha um senso de obrigação para com as pessoas que moravam
nas terras dos Lucretili. O pai, ela sabia, deixara-lhe o castelo e as terras».
In
Philippa Gregory, O Substituto, 2012, Editora Galera Record, colecção Ordem da
Escuridão, 2015, ISBN 978-850-140-319-3.
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