Castelo
Sant’Angelo. Roma. 1453
«(…)
Ele puxou o capuz mais para baixo, de modo que o rosto ficou completamente oculto.
É por isso que nos derrotarão, a não ser que passemos a ver como eles veem,
pensar como eles pensam e contar como eles contam. Talvez um jovem como você
também consiga aprender sua língua. Luca não conseguia tirar os olhos do papel
onde o homem marcara dez espaços de contagem, indo até o zero e além. E então,
o que acha?, perguntou o inquisidor. Acha que dez nadas poderiam ser criaturas
do mundo invisível? Dez coisas invisíveis? Dez fantasmas? Dez anjos? Se pudéssemos
calcular além do nada, começou Luca, seria possível mostrar o que foi perdido.
Digamos que alguém fosse mercador e contraísse uma dívida, num país ou uma
viagem, maior que a sua própria fortuna. Seria possível mostrar-lhe exactamente
o valor dessa dívida: pudesse mostrar o que foi perdido. Daria para mostrar
quanto menos que nada ele possui, o quanto ele precisa ganhar antes de ter algo
outra vez. Sim, respondeu o homem. Com o zero, é possível medir o que não está
ali. Os otomanos não tomaram Constantinopla e o nosso império no Oriente apenas
porque têm os exércitos mais fortes e os melhores comandantes, mas também
porque possuem uma arma que nós não temos: um canhão tão imenso que requer
sessenta bois para ser puxado. Eles sabem de coisas que não compreendemos. O
motivo pelo qual mandei buscá-lo, o motivo pelo qual foi expulso do mosteiro,
em vez de ser punido pela desobediência ou torturado por heresia, é o que quero
que aprenda esses mistérios, quero que os explore, para que tomemos conhecimento
deles e possamos nos defender.
O
zero é uma das coisas que devo estudar? Irei aos otomanos e aprenderei com
eles? Ou aprenderei com os seus estudos? O homem riu e estendeu a folha de
papel contendo os numerais arábicos para o noviço, segurando-a com um dedo. Deixarei
que fique com isto, prometeu. Pode ser sua a recompensa quando eu estiver
satisfeito com o seu trabalho e a sua missão estiver completa. E, sim, talvez tenha
de ir aos infiéis, viver entre eles. Será os meus olhos e ouvidos. Irá à
procura de mistérios, em busca de conhecimento. Mapeará medos, para revelar
todas as formas e manifestações das trevas. Buscará compreender as coisas, será
parte da nossa Ordem, que busca compreender tudo. Ele pôde ver a face de Luca
se iluminar quando o rapaz pensou em levar uma vida dedicada à pesquisa. Então,
o jovem hesitou. Não vou saber o que fazer, confessou. Nem por onde começar. Não
entendo nada! Como vou saber aonde ir ou o que fazer? Eu o enviarei a um conhecedor,
para estudar com os mestres. Eles lhe ensinarão as leis e os poderes de que
precisará para convocar um tribunal ou uma inquisição. Aprenderá pelo que deve
procurar e como conduzir um interrogatório. Compreenderá os indícios de que
alguém deve ser enviado para os poderes terrenos, sejam os prefeitos das
cidades ou os senhores dos solares, ou quando devem ser punidos pela Igreja.
Aprenderá a discernir a hora de perdoar e a de castigar. Quando estiver pronto,
quando tiver sido treinado, eu o enviarei na primeira missão. Luca assentiu». In Philippa
Gregory, O Substituto, 2012, Editora Galera Record, colecção Ordem da
Escuridão, 2015, ISBN 978-850-140-319-3.
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