«(…) As tranças, essas, cobriu-as
com um véu comprido e transparente. Ao chegar à cozinha, depois de ter
atravessado a casa e de passar disfarçadamente em frente à sala comum onde
estava João Afonso Telo a falar de política com outros homens, Leonor encontrou
Briolanja Mendes, sozinha, de pé, encostada à janela, olhando pensativa as
urzes do campo cobertas de geada. Então?..., perguntou num tom de voz muito
suave. Senhora, precisamos de falar. A atitude serena de Briolanja deixou a
jovem dama mais inquieta do que aparentava. Tanto assim que logo lhe segurou o
braço com a mão tremente e, quase em segredo, voltou a perguntar: que te
disseram as estrelas? Muita coisa, mas temos que ir falar para outro lado. Leonor
Teles ajeitou as tranças sob o véu descaído pelos ombros, aproximou a boca do
ouvido direito da criada e segredou: encontramo-nos na câmara do santuário. Não
te demores, que eu vou andando. E saiu. Na sala comum, o conde e os seus amigos
continuavam à conversa, tão entretidos e entusiasmados que nem deram pela
segunda passagem da jovem no corredor. A câmara do santuário situava-se no lado
oposto à sala, na outra extremidade do solar. Quando Leonor abriu a porta do
compartimento mal iluminado precipitou-se imediatamente para o genuflexório e
ali ficou rezando ave-marias atrás de ave -marias até Briolanja chegar. Só que
o seu estado de ansiedade e de pânico eram tais que já nem a última oração concluiu
ao ver a aia aproximar-se. Nesse momento levantou-se de um salto, agarrou a ama
pelo capote e voltou a perguntar: que te disseram as estrelas? Minha boa amiga,
diz-me, que te disseram elas?
Briolanja Mendes pegou-lhe nas mãos,
conduziu-a à proximidade dos bancos que ambas haviam ocupado no dia anterior e
respondeu: disseram que deve casar com o fidalgo João Lourenço... Ao ouvir
semelhante conselho, a jovem deixou-se cair no assento de madeira, lançou as mãos
ao rosto e pôs-se a carpir baixinho. Senhora... Não digas mais nada, por amor
de Deus. Pai Nosso que estás no Céu... Briolanja comoveu-se no mesmo instante.
Com uma mão acariciou as tranças da jovem e com a outra puxou para si o segundo
banco. Depois, já sentada, disse: senhora, eu gostaria que me ouvisse agora,
porque tenho muita coisa para contar. Falei com as estrelas, e o que elas
disseram é que a senhora não deve contrariar o senhor conde, seu estimado tio,
por ele ser quem é, por tudo o que ele fez pela sua vida, pela sua graça, pela
sua esmerada educação e conduta. Reconhecem que o fidalgo João Lourenço não é homem
para a senhora, mas também acham que o casamento com ele, ou mesmo que com
outro fosse, não tem que durar a vida inteira. Aconselharam-me, no entanto, a
preparar daqui a algum tempo dois ou três filtros de amor para dar de beber ao
seu futuro marido. E eu sei como prepará-los, senhora, eu sei. E então verá que
depois de ele os tomar, misturados no vinho, nunca mais será o mesmo...
Num misto de silêncio, respeito e
medo, Leonor Teles ouviu tudo. Mas, depois de Briolanja se calar, virou-se para
ela e perguntou: vais dar cabo dele, não é? A cuvilheira não respondeu
imediatamente. Fez uma pausa, persignou-se duas vezes e, com a sabedoria da idade
de que tanto se socorria, esclareceu: que Deus Nosso Senhor me perdoe, mas não é
preciso dar cabo dele, nem eu seria capaz disso. Basta que ele dê cabo de si próprio.
Eu não lhe ponho nada na garganta, ponho-lhe, isso sim, uma coisa no vaso do
vinho, e nem sequer lhe peço para beber. Mas, se o beber, só ele e mais ninguém
é o culpado. Leonor percebeu claramente o alcance brutal das palavras de
Briolanja Mendes e o que elas significavam. Arrepiada com tal solução, a jovem levantou-se,
foi à janela espreitar o tempo e, de costas para a ama, comentou apenas com uma
interrogação: tenho de me casar com João Lourenço, não é verdade? Sim, senhora.
Tem de se casar com ele. E é já no dia vinte e dois de Outubro, não é?, continuou
num tom de voz cínico e invulgar, antes de abandonar a câmara. É verdade.
Instantes passados, Leonor Teles
virou-se para Briolanja, fitou-a com os olhos muito abertos e, com o dedo em
riste, preveniu, alterada: nunca fales a ninguém destas nossas conversas, nem o
que quer que seja sobre o meu passado que conheces como nenhuma outra pessoa.
Ouviste? Briolanja Mendes recuou um passo, colocou a mão no peito como era seu hábito
e, ofendida, respondeu: Senhora, disse-lhe já uma vez que da minha boca não
sairá uma só palavra. Tudo quanto sei irá comigo para a cova. E, como a minha
morte não deve andar longe, depressa os meus segredos deixarão de a preocupar. Ao
ouvir estas palavras, serenas mas muito firmes, Leonor percebeu que fora
demasiado impiedosa com a única mulher do mundo que lhe guardava os segredos
com lealdade e segurança idênticas às de um guarda do rei. Por isso, e para
atenuar de algum modo os estragos que fizera na esfera emocional da sua ama
sempre atenta e dedicada, acrescentou com um suave sorriso: eu sei que me és
fiel, nem foi por mal que te pedi para guardares os meus segredos. Aliás, há
muito que andava para te dizer o seguinte: depois do meu casamento, quando for
viver com o fidalgo João Lourenço para Pombeiro, desejo que vás comigo. Vou
pedir ao meu estimado tio para te levar e ele decerto não dirá que não. Emocionada,
Briolanja apenas respondeu: irei com a senhora até ao fim do mundo, se o mundo
tiver fim. E em silêncio começou a chorar». In José Manuel Saraiva, Rosa
Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
Cortesia de OdoLivro/JDACT