Constantinopla. Abril do ano de 1204
«(…)
As ruas da cidade encontravam-se repletas de corpos mutilados, cobertos de sangue,
com feridas profundas provocadas pelo golpe certeiro da espada. Eu caminhava lentamente,
cambaleando, mergulhado na embriaguez que me provocava aquela loucura desenfreada.
Seguia com dificuldade a figura firme do abade Martín, que abria caminho por entre
aquele marasmo de morte e crueldade. A manhã rompera clara e o céu abria-se, aos
meus olhos, pintado de um azul intenso. Nada me fazia prever os acontecimentos que
se seguiram e de que fui testemunha obrigada e horrorizada. Tínhamo-nos levantado
de madrugada, respondendo à chamada do abade. Bernardo e eu dormíamos ao pé da
sua cama, no abrigo que os soldados tinham preparado para nos acomodar havia
mais de um mês. A ofensiva estava preparada e os homens tinham-se confessado e
comungado no dia anterior. O abade Martín, a quem, desde que chegara ao acampamento,
erguido diante das muralhas da cidade sitiada, tinha sido atribuído o comando de
todos os clérigos que participavam da expedição, terminara os seus deveres a
altas horas da noite, entregue à difícil missão de reconfortar as almas dos
homens, conscientes de que enfrentavam uma morte terrível e impiedosa. Os sermões
dos clérigos para animar as tropas para o combate tinham-se concentrado na
afirmação de que os gregos da cidade de Constantinopla eram traidores e hereges,
chegando a compará-los com os judeus. Ao ouvirem estes discursos, os corações enalteciam-se
e a convicção de que Deus estava connosco ia aumentando à medida que as prédicas
se estendiam naquele ambiente rarefeito por uma calma tensa. Os homens tinham sido
obrigados a jurar, sobre relíquias sagradas, que, tanto durante a batalha como depois,
procederiam de forma honesta e cristã, respeitando os adversários e, sobretudo,
os cidadãos que se vissem envolvidos no combate. Foram obrigados a jurar que não
cometeriam violações e que respeitariam os monges e os sacerdotes, a não ser
que agissem em defesa própria, e foi-lhes proibido invadir igrejas ou mosteiros.
O castigo para os que não cumprissem aquele juramento era a excomunhão,
chegando-se, inclusivamente, a ameaçá-los com a execução, nos casos mais
graves. Mas depois de os latinos controlarem a cidade, os meus olhos viriam a constatar
que aquele juramento, feito perante o sagrado, se revelaria sem sentido.
Tanto
os cavaleiros como os soldados a pé tinham de se lembrar que os inimigos que iam
enfrentar também eram cristãos, apesar de serem considerados apóstatas. Eu não
compreendia muito bem o contrassenso de lutarmos contra irmãos de fé, em vez de
lançarmos as nossas torças contra o muçulmano, que continuava senhor da Terra Santa,
mas o abade explicara-me alguns dias antes que, desde 1054, os gregos tinham
renegado a autoridade do papa de Roma, e isso fazia deles hereges. É fácil, Umberto,
disse-me, com um ar paciente, os homens devem seguir os desígnios de Deus, e é o
próprio Cristo que exige que nos vinguemos destes inimigos da nossa fé.
Portanto, os santos guerreiros da Igreja são obrigados a defender as nossas crenças
acima de tudo. É isso que está a fazer o exército que aqui vês, explicou, estendendo
a mão na direcção do mar de homens que se movia para um lado e para o outro
numa actividade frenética, ocupados nos preparativos para a batalha, que já se avizinhava.
Custa-me a entender, padre, repeti eu várias vezes, abanando a cabeça com o olhar
perdido na massa humana que ia assentando no acampamento erguido em Gálata». In
Paloma Shanchez-Garnica, A Brisa do Oriente, 2009, tradução de Luís Coputinho,
Saída de Emergência, 2012, ISBN 978-989-637-411-2.
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