«(…) Sua mãe, nascida numa
dessas fidalguias broncas onde os rebentos fêmeas sofrem o desprezo paterno,
criara-se pelos casebres dos caseiros, entre a canzoada dos perdigueiros e
filhotes de labrego, na promiscuidade das cozinhas térreas onde a fumaça se
enovela para a cura do fumeiro, onde a vida do campónio se concentra, onde se
come, se projectam tarefas, se louvam e se maldizem os amos, o tempo, as crias,
o próprio Deus. Só com dezoito anos a rapariga foi chamada ao solar, a coabitar
com os irmãos. Era analfabeta, e tinha como divertimento predilecto o
aproximar-se à socapa dos cães que lambiam nas escudelas o caldo de abóbora, e cortar-lhes com um
podão as caudas que abanicavam. De resto, bonita, de pele clara, com
sinaizinhos negros distribuídos com mimo pelas faces. Dizia milhão em vez de
milho, vestia-se como uma imagem de andor, com muito gosto pelos vidrilhos, as
sedas bordadas, não hesitando em retalhar as velhas colchas orientais, para
franzir uma saia. Ainda não atingira a maioridade, apareceu grávida. O pai
zurziu-a a rebenque de baleia, cruzando-lhe vergões empolados e azuis, dos
ombros até às ancas; os seus uivos atravessavam as enormes salas consecutivas
cujos reposteiros de damasco as crianças tinham denegrido, e as servas
ficavam-se nos corredores, arrepiadas de susto, rezando baixo e correndo em
debandada quando ouviam no patamar o estrupir das botifarras dos fidalgos novos
que chegavam da caça, um tanto bêbados, altercando entre si. Um ano depois, a
moça foi entregue em casamento a um proprietário rico que a aceitou,
escurecendo o percalço havido com o dote fabuloso que a acompanhava. O povo
recordava ainda a baixela de prata que carregava uma cibana e cujo peso
fazia oscilar o andamento dos bois. Não foi feliz, a pobre. Sete anos depois
nascera-lhe Isidra, e, um pouco além dessa data, ela morrera, no recolhimento
da sua alcova, assistida apenas pelo capelão, um homenzinho untuoso e triste e
que mascava tabaco, bufando escarros negros nas bacias onde boiavam compressas
sujas de vinagre. A clausura fizera-a doente, vivia mergulhada em banhos de farelos, o seu hálito tinha um odor de drogas, e
os dentes tinham-lhe caído. O marido chamava-lhe senhora, fingindo desconhecer
que ela troçava dele e lhe punha alcunhas sórdidas, porque sempre lhe foi
odioso e gostava de o vexar lançando-lhe em rosto a sua fidalguia, a sua casa
de Borba, enorme, com salões revestidos de chumbo e carrancas de pedra na extremidade
das varandas. Dizia-se que um dos próprios irmãos a desflorara e que ela o
amava ainda, com desafio, e, pronunciando-lhe o nome, chorava, revendo a sua
galhardia, o seu talento para esporear cavalos, fazendo-os caracolear, com
placas de espuma sanguinolenta sob a espora de prata.
Isidra, com vinte anos, era designada como boa estampa,
pelo avô. Era grande, com esses olhos sombrios e um tanto vítreos que a palidez
dum rosto favorece. Fora sempre relutante à educação, falava mal, gostando de
desorientar os homens com a sua bruteza de linguagem e rindo-se quando eles,
tolhidos de espanto, enrubesciam. Conhecera Francisco Teixeira numa tarde de
romaria que ela presenciava da sacada aberta sobre o largo da povoação em
festa: vestida de tafetá negro, sem jóias, a trança dos cabelos um tanto solta
nas espáduas, abanava-se com um grande leque de moiré e
azeviche, contemplando com o olhar indolente a procissão que descia do adro, as
torres dos andores oscilando, com as suas fitas e as suas palmas de papel tremendo
e voando entre as copas
poeirentas das acácias. Subitamente, um redemoinho de desordem ferveu,
alastrando logo com um corricar de cachopos que se arrastavam sob as pernas do
poviléu, e o escândalo ainda morno, ainda lento, das mulheres, que reajustavam
na nuca os lenços de algodão e buscavam no poial das portas um degrau seguro
para abrigadamente presenciarem. Mas a luta embraveceu, magotes como vagas
chocaram-se, confluindo das margens do largo, ouvia-se entre gritos o seco
rumor dos paus que embatiam, estalavam, eram lançados longe, caindo sobre as
tendas ou os arraiais das louceiras. E, então, numa clareira que se foi
desenhando mais vazia, mais circular, destacou-se o pequeno vulto de Francisco
Teixeira que avançava, grave e tranquilo, repelindo à sua volta o eriçado dos
marmeleiros que combatiam, iam cedendo, recuavam, dispersando-se nas alas da
multidão que se agitava, ondulando como um corpo que voga na maré. Havia
sangue; os andores tinham parado na ladeira e os anjos choravam, não se atrevendo
a abandonar o posto, suados sob as vestes debruadas com pele branca, de coelho,
as botas amarelas de dusaque muito atufadas na poeira. Sob o pálio, o abade,
recolhido, mansamente esperava, entre as opas vermelhas cujas pregas o sol
riscara de violeta e as filas de crentes ajoelhados sobre os lenços de bolso.
Então essa guarda?, impacientavam-se os mesários». In Agustina Bessa Luís, A Sibila, 1954, Relógio d’Água,
2017, ISBN 978-989-641-747-5.
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