O
Silêncio
«(…)
De olhos fechados, sentia dos outros
os passos moles na areia. Encolhia-se por dentro até eles passarem e depois,
com alívio, entreabria as pálpebras para vê-los já ao longe, quase sempre
devagar a afastarem-se ainda e ainda, certamente até lá diante onde estavam as
barracas, para aí se deixarem cair na sombra sob os toldos. E ela via-os
através da neblina crispada do calor, uma espécie de hálito ou cortina. E logo
era o silêncio: o silêncio côncavo do mar. A praia. Sentava-se inundada de sol,
os olhos cerrados, encostava a cara aos joelhos erguidos e ficava assim sem
pensar, numa dormência boa, anestesiada pelo calor. Os braços à volta das
pernas eram um cordão bronzeado, brilhante de suar, e os cabelos, apanhados ao
acaso e presos por ganchos ao alto da cabeça, escapavam-se e colavam-se-lhe ao
pescoço, até mesmo à cara: húmidos, baços. Foi assim que a vi, olhei-a e tive a
sensação nítida que adormecera. A pele do corpo era lisa, toda ela igualmente
queimada pelo sol, sem manchas. A cara só então a descobriu, de súbito. Ainda
mais devagar continuei pelo risco que o mar deixava na areia, um traço
cravejado de pequenas pedras e conchas partidas, pequenos búzios e algas
esgarçadas de um verde profundo. Olho-a: à medida que me aproximo atraso o
passo, mais e mais. Com os braços em redor das pernas e o olhar vazio pregado
no mar, parece antes uma estátua qualquer de qualquer fonte ou jardim, qualquer
museu. Hesito. Há dias que hesito, acabando por continuar sempre sem nunca lhe
falar. Naquela sua atitude ostensiva de fuga existe uma tal apatia que
estremeço e irresistivelmente paro; hoje finalmente. Primeiro sinto o seu olhar
preso no meu corpo, depois na minha cara. Por instinto ergo as mãos até à boca
como para abafar um grito. Será o ódio que lhe obscurece de maneira tão
singular a cor raiada da íris? (Sem mover um músculo, sem mostrar qualquer
curiosidade, imóvel, ela olha-me.) Sim, é apenas o calor; como é apenas o calor
que lhe faz descerrar os lábios quando à noite aparece no terraço do hotel, de
ombros sempre nus, onde ele apoia o braço firme a roçar o amarelo esbatido do
fato, ou quando na grande sala de jantar as mãos lhe tremem sobre a toalha
branca. Imóvel; olho-a. Deixo as mãos sobre a boca e estremeço como se um
súbito vento se tivesse levantado para me contornar o corpo. Sem nenhuma
surpresa perante a minha atitude, ela deixa os olhos nos meus. O que talvez me
apavore, o que me enche de uma vontade louca de gritar sem conseguir ir-me
embora, nem de lhe contar o que afinal tenho de urgente para dizer, é a tamanha indiferença daquela
mulher, a tamanha apatia. De olhos fixos, duros, nos seus, vê-a hirta, o grito
suspenso agarrado pelos dedos. Contraída, espera que continue, que se afaste
como os outros, mas à medida que o tempo passa compreende a diferença; retrai
os dedos entrelaçados nos joelhos. Recorda-se agora perfeitamente: a mulher que
à noite aparece no terraço, de vestido branco ou talvez amarelo muito claro,
esbatido, os ombros sempre nus onde ele apoia o braço firme. O olhar vago não
se lhe detém em nada e os dedos que lhe vê tremer neste momento sobre a boca
tremem todas as noites sobre a toalha branca, ansiosos, quase enlouquecidos. Ou
será o calor? A pergunta que faço, nauseada, enquanto ela me fixa, os braços à
roda das pernas.
O
Sono
Há na sua voz um acento febril. Às vezes apático
mas febril. Encostada à balaustrada de pedra cinzenta, granitada, vejo-a de
perfil, no seu vestido branco, leve, movido pela aragem morna que se levantou
lá em baixo no jardim sobre o qual se debruça, encostando os quadris magros ao
peitoril áspero, sem temperatura, somente grosso ao tacto e de um odor acre,
sempre acre, em qualquer estação do ano. Demoro-me, já no terraço enorme.
Demoro-me a vê-la mover-se no seu vestido negro quase transparente; a mover-se
em redor da enorme figura de pedra, sem a olhar: uma mulher amparando nas duas
mãos abertas os peitos nus, ofertados, firmes. Vejo-a..., é uma estátua como
tantas lá em baixo no jardim, mas a única aqui, no terraço». In
Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, Publicações Europa América,
colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.
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