Violante
Andrade. Évora, 1 de Junho, 1545
«(…) Acrescia que dona Joana, talvez
por ser feia e peluda, aperfeiçoara outras mestrias: era a dama mais informada
da Corte de dona Catarina. Mal a vi deslizar sobre o soalho, como um cisne,
tentando cumprir as regras do decoro, escondendo os chapins de seda, tive o
cuidado de me certificar de que ninguém escutava às portas, o que por aqui é coisa
muito usual. Passei a explanar-lhe o plano: precisava de tirar a limpo se Luís
Vaz cedia aos encantos e graças femininas, apartando-se dos seus deveres. Não
me referia, claro está, às graças e desgraças das rameiras, mas às mais
delicadas e tentadoras graças feminis. Pelo semblante de dona Joana percebi que
me tinha feito entender. As altas funções que confiara a Luís Vaz na instrução
do morgado não eram harmonizáveis com dispersões de distinta natureza. Não era
a má fama do poeta Trinca-Fortes que
me assustava, era uma outra coisa que não tinha ainda por certa mas que o
alheava das obrigações que o prendiam..., ao pequeno Antoninho.
Contei-lhe que Luís Vaz perdia
muito tempo a compor sonetos e elegias, éclogas e sextilhas na medida nova,
anotando-as todas num caderno. E disse-lhe que tudo aquilo não eram meras
suposições, que o havia confirmado com o meu irmão mais novo, quase da mesma
idade do Antoninho. Sucede que meu irmão Francisco assiste bastas vezes às
lições do mestre, acostumando-se até a copiar as rimas do poeta no cancioneiro
que anda a fazer. Diz que as acha graciosíssimas e plenas de chiste e frescura
e pasma com a rapidez com que Luís Vaz as compõe, num estalar de dedos, sem uma
hesitação, uma quebra que seja, como quem está embriagado por uma arrebatadora paixão.
Pousei no regaço de dona Joana um saco de moedas e rematei: quero ver se ele te
resiste.
Dona Joana abriu muito os olhos,
espantada com o meu inusitado gesto. Primeiro hesitou; depois, decidida,
afastou o saco. Não, senhora, de forma alguma, jamais o aceitaria, mas estais certa
em vosso pensar. Mordeu o lábio e, gaguejando, prosseguiu: Luís Vaz anda
alvoraçado e, tal como bem pressentis, não são as noites de má fama em Alfama,
ou o tempo que consome a versejar, ou mesmo o Mal-Cozinhado, que o viciam: é a
paixão que o domina. O chão escapou-se-me por debaixo dos pés. Saberia a dama
da nossa chama? Saberia ela das noites em claro? Deste filho que gero e que tanto
poderá ser dele como de meu marido?
Encorajei-a a que prosseguisse,
mas as mãos tremiam-me e as cores fugiam-me do rosto. Chama-se Catarina Ataíde,
é a minha melhor amiga e, tal como eu, dama da Rainha. Até aí cuidara não ter
coração, só quando ali se quebrou me apercebi de que o tinha. E não se quebrou
de uma só vez, foi-se quebrando aos pedaços, em tortura aguda e lenta». In
Maria João Lopo Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.
Cortesia de
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