«(…) Nasceste no dia de Osíris!
Entre o frio e o calor! Pairaste entre a vida e a morte, a minha e a tua!
Prepara-te, meu filho, para esta vida incerta, de tristezas e venturas! Valéria
e as jovens ajudantes sorriam de ternura. Não fora ainda tempo de o azar bater à
porta da velha parteira. Continuaria afamada na arte de ajudar o nascimento de
crianças e animais, porque assistia também às parições das cabras, ovelhas e
vacas da villa, para melhor
apurar a sua sabedoria. Por estes dias, iremos a Iria Flavia, ao templo de Ísis,
agradecer-lhe os bons augúrios do parto!, rematou a dona da casa, antes de
encostar a cria ao peito para a primeira refeição. No calor do quarto,
recomposta dos esforços físicos e distante dos temores iniciais, Priscila não
imaginava as pressas e aflições com que haveria de correr da Villa Aseconia até
Iria Flavia, em busca do colo de Ísis. Muito menos lhe passava pela cabeça que
um homem sem escrúpulos lhe rondava o quarto, tomado por um torpe sentimento.
Bracara
Augusta (Braga)
Por sua vez, em Bracara Augusta,
Lucídio Danígico Tácito tratava dos negócios, desconhecedor dos auspiciosos
acontecimentos na sua villa.
Fora chamado, dias antes, à capital da Galécia para clarificar o cadastro da
sua propriedade, na revisão que o fisco laboriosamente operava em tempos de
carestia para os cofres do Estado. Aproveitara também para transportar produtos
das colheitas para a sua domus
bracarense. Desafortunadamente, o carro partira duas rodas numa rua da
cidade, caindo no buraco da calçada, que a infindável intempérie havia gerado e
tapado com água, iludindo o condutor. Lucídio pretendia que fossem os artistas
da sua casa a proceder à reparação. Pediu, assim, ao irmão para mandar um
escravo a cavalo à villa
com ordens para que o viessem buscar no carro novo que oferecera à esposa.
Quando voltasse aos seus domínios, ele próprio providenciaria a escolha de bons
carpinteiros para enviar à capital e não mais se esqueceria de consultar o
velho adivinho surdo, a fim de se assegurar do momento adequado para uma viagem
sem chuva. A tormenta daqueles dias não mostrava ares de amainar. Lucídio, um
homem alto, vigoroso e de intensos olhos azuis brilhando no rosto fino, era um abastado
proprietário rural da classe senatorial dos clarissimi, o que lhe garantia a protecção do império. A
sociedade romana, emparedada em classes estanques, praticamente impedia o movimento
ascendente dos cidadãos. Mas a deusa Fortuna fora-lhe generosa, fazendo-o nascer
no berço da alta aristocracia provincial hispânica.
Décadas
antes, necessitando de pecúlio para a guerra e de deslumbrar o povo com o fausto
imperial, o imperador Diocleciano decidira criar uma novidade tributária: a
avaliação da contribuição fundiária em caput ou jugum,
unidade fiscal ligada à capacidade produtiva de cada propriedade. Já viste como
vão os tempos, meu irmão?! Onde param os valores do império que tão longe
levaram os romanos?! Sabino, o irmão mais velho de Lucídio, comia com vagar um
naco de pão com queijo, oriundo da sua villa, no sul da Galécia, junto à foz do Tamaca. Ambos
mantinham residência na capital da província, para estarem mais próximos do
poder público curial e do governador. A casa, com as termas e jardins, fora
herança de um tio rico e sem filhos, construída numa área abandonada que este
comprara à cidade. Tens razão! O império anda desvairado e nem os velhos deuses
nos valem! Com certeza que ouviste falar dos tumultos com os cristãos… Não se
fala de outra coisa! Parece que se tomaram de razões durante o culto a Mitra». In
Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN
978-972-068-096-9.
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